Sob a Lua

É noite. Sei que se faz trevas, por conta daquele ar noturno que invade o ambiente, mesmo sem que possamos contemplar a escuridão que domina lá fora. Dentro da alcova, provo um drinque barato. Pura água, que saboreio como um vinho branco raro, que umedece os pelos do bigode, que bóiam feito cerdas de uma espécie de porífero, preso a uma superfície de carne, que é embebida pela onda de um gole. A água é turva ao adentrar a boca, pois escorre o mistério orgânico, dissolvida em processos. Degustação interrompida, pelo braço que se estica, estalando o cotovelo, tornando as articulações audíveis, por sua condição de atrito. Os ossos não são mais engrenagens bem lubrificadas e deslizantes, mas sim, um mecanismo travado pelo desgaste, rangendo em um lamento osteoporoso.

Dedos anelares, que permaneceram quando os anéis se foram, folheiam as páginas do livro de Clarice Lispector, a procura de algum sentido oculto, naquelas páginas brancas, com matizes amarelados, preenchidas com caracteres bem comportados, que buscam a harmonia que a autora insiste em negar. A ordem pode existir na desorganização, que na imprecisão, se faz precisamente incerta, contornando realidades em serpenteantes perspectivas. Do lado esquerdo do monitor, ou seria direito meu, quem sabe destro dele, variando conforme a movimentação, que é virtual, consigo enxergar aqueles números que registram o tempo, sem o tic tac melancólica, em um silencia que diz tanto ao refletir a percussão dos dedos no teclado de plástico negro. O ranger da cadeira que se mistura ao balanço da tábua que pende da escrivaninha, orquestrando uma sinfonia de objetos tocados e tocantes.

As mídias espalhadas, são frutos consumíveis por olhos e ouvidos, que o tato apenas transporta e o paladar e o olfato ignoram. Aumentando o volume, produzo intensas ondas que ecoam por ouvidos desprevenidos, fazendo com que uma mulher-cadela, tape os ouvidos com as patas molhadas, indignada por ter seu cio comprometido. Nem mesmo as estátuas se manifestam, mantendo a postura fingida, que tenta iludir seus apreciadores, que nunca se dão conta da movimentação discreta, que ocorre há todo momento, naquilo que parece inabalável. Abalado estou, por essa gravidade que me puxa apenas para baixo, me deixando em contínuo declínio, na busca pela guarida de Hades. O impacto é severo, fazendo com que me despedace sem perder um só pedaço, embaralhando as letras que lacrimejam os olhos quase secos. Uma lágrima rola feito grão de areia, fazendo com que várias seguidas, causem uma tempestade nesse deserto de existir, a ponto de embaçar as vistas, promovendo a compressão das pálpebras, que se fazem coberturas de tecido pelicular, para a proteção de órbitas beduínas.

Me escondo dessa lua mentirosa, que finge brilhar, refletindo apenas a luz de Apolo, que insiste em se mostrar. Agora já posso me desdobrar, espalhando esse falso núcleo, que é similar a todos os outros seres curvados, que acreditam possuir um dentro. Sorrir é estranho, já que com os dentes para fora, o orifício banguela deforma, demonstrando apenas os pelos que a barba expõe, como se fossem as cerdas de uma escova de dentes gasta. Virando e revirando, não consigo reconstituir os passos de minha gênese, perdendo a cada ancestral enterrado, um pouco de mim, restando a esperança de prole, que seria minha contribuição para a tragédia, a única herança verídica. Minha angústia diante dessa realidade, faz com que eu sufoque precocemente, cada sonho, abortando desejos, em um caminho decorado com fetos mortos. Mais uma dose de água, brindando a lua que se move porque a Terra move primeiro, deixando a imagem da primeira, resignada ao balanço da segunda, que embala e faz adormecer os satélites, tornando-os refletores.

Também orbito em volta desse copo, refletindo a fluidez aquosa, que me inunda e faz transbordar. Escorrego por um pensamento, sendo arrebatado por um latido de cão deprimido, que chora em uivo lunar. Uivo pra dentro, pois sou lobisomem. Desgarrado de minha alcatéia, sigo errante pelas florestas da razão. Arreganho os dentes para a alienação que me socorre, já que minha selvageria é racional. Despedaço essa loucura, montando minha lógica gramatical, que não passa de uma cabala literária. Sob a lua, sou um Sísifo que ao contrário do Escaravelho, empurra esse satélite, em vez do astro rei, no instante em que carrega a noite nas costas, feito um Atlas decrépito, que curva os joelhos pela necessidade em não mais se fazer de ereto. Uma pequena brasa é o que resta como Anima, sendo aquecida por emoções que não a inflamam e nem a deixam arrefecer. Um breve suspiro, que não emociona, mas se faz notar, ainda que modesto. Estrela cadente, decadente, que a aurora obscurece, com seu clarear de falso amanhecer.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 29/09/2012
Código do texto: T3907178
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