Quase Noite

Embaixo de paredes trincadas, aprecio a tez da parede que solta, feito pele desprendida após forte exposição aos raios solares. Deixando escamas de um reboco corroído, que rasga a imaginação de quem percorre as trilhas que abrigam insetos diversos, protegidos da tirania de outras espécies. Cadeiras reunidas em volta de uma mesa, sem quem as ocupe, compondo um ambiente de moldura, onde a figura humana aparece apenas por hipótese. O cerco da madeira velha, que o cupim consome por hábito glutão, criando uma rústica dramaticidade. Venezianas de janelas antigas, onde possíveis olhos, buscam nas frestas, algo que faça o corpo escapar da prisão. Sempre busca-se uma brecha, algo insinuante, a ponto de escorregar para um exterior, ainda que restrito ao que os sentidos fornecem. A visão capta um além, angustiada pela emoção que a repressão causa.

Chamam gueto a esse beco, que é lodoso e escuro, abrigando seres que transitam nessa valeta. O trânsito de pedestres é o esgoto fluindo, contaminando a todos com essa falsa noção de higiene, que tenta transcender, cheia de normatizações patéticas. O estrondo que abafa o pensamento, não é o estouro de champanhe, mas sim o gás liberado ao destampar o refrigerante morno, enchendo copos de plásticos, descartáveis como qualquer um dos que acreditam ser especiais. A escada emenda com o céu, na continuação de degraus negros, que o solado do sapato tateia. Também existe escada voltada para baixo, abrindo aquela expressão de abismo, pronta para convidar desejos suicidas a se lançarem contra os degraus que já possuem cor púrpura. O corpo que cai é como outro objeto, partindo-se, criando trincados, estalos, causando estrondo. A gravidade não empurra, apenas acolhe.

Seca a vida, como o líquido no fundo do copo. Embora sempre apareça alguma formiga, que consegue absorver um resquício daquela doçura esquecida. A multiplicação de formigueiros é uma necessidade diante de nossas sobras. Talvez isso explique o riso somado a outras bocas falantes, que emudecem quando somadas, feito único aplauso diante de uma cena majestosa. Agrupam-se quantidades de jovens, para somados, compensarem a idade de um dos velhos. A crise econômica não precisa ser comentada, basta observar as maneiras contidas de cada um dos presentes. A televisão exibe suas imagens, apelando para conseguir alguma atenção. Na tela, um azul que rivaliza com o céu, que está negro, indiferente a tecnologia que só cativa o seu criador, buscando seduzir sua razão de existir.

Em cima do muro, o felino escova o pelo com sua língua áspera, encarando-me sem receio. Eu que temo esse olhar que me desnuda, fazendo abaixo de bicho. Sinto-me como uma personagem de Dostoievski, sendo menos mendigo, mais sóbrio e exatamente com a mesma dramaticidade, eis a grande miséria. A mão que toca meu ombro, faz o corpo estremecer, já que repudio esse gesto de afago comedido. Busco um abraço sufocante, que esprema o tórax e faça os seios comprimirem. Nauseante aroma de suor e colônia, que homens idosos insistem em banhar-se, feito formol, para conservação. Quem não se engana com esse aparato estético? As velhas emperequetadas são mais chamativas, com pesada maquiagem e dentaduras bem escovadas. Uma rouquidão em vozes já cansadas, que dão uma nota mais grave às cordas vocais. Sons que atiçam o bocejo, fazendo as pálpebras caírem, não por completo, dando apenas um ar de comércio em final de expediente.

O beijo choca aqueles acostumados com acenos, ainda mais seguido de afagos. Dó o copo com a cerveja sem espuma, feito urina rejeitada, disposta sobre a pia, recebendo respingos da torneira, que com seu fluxo de água, jorra sobre mãos gordurosas. Tudo sob minhas vistas, escorado em uma pilastra. Que os ácaros absorvam minhas películas desprendidas, que são cascas mortas, podendo se fartar de mim, enquanto eu ignoro essa parede descascada, já que não provarei dela, como tantas crianças miseráveis, que tiveram dieta a base de tijolo. Fico satisfeito por logo poder repousar, já que ao dormir posso me desligar, não de todo, mas só a ponto de poder suportar. Sonhando acordado eu acordo sonhando. O sol ainda mantém sua postura altiva, mas é certo que toda tarde é quase noite.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 30/09/2012
Código do texto: T3908723
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