O Guardador de Livros

De olhos vidrados, fitava a pilha de livros amontoados em estantes. Não sabia ao certo em que momento começara a juntar aquela quantidade de volumes, apena suma vaga lembrança do período em que organizara os objetos de vaidade literária. Seus olhos brilhavam ao contemplar aquela altura, quase se igualando ao teto do cômodo. Sentia-se pequeno diante daquela titânica pilha, sem contar o quão ínfimo se tornava, ao imaginar os autores e as informações contidas em toda aquela modesta biblioteca. Caminhando de um lado para o outro, sendo medido pelo início e fim das prateleiras, que suportam o peso, muito mais do que seus ombros já cansados. Existe constantemente, aquele momento em que começa a contabilizar as obras, sendo interrompido por alguma distração ou mesmo enfado de tal empreitada.

A esposa, ainda jovem, não possui aquele ar que averiguara nas obras de Balzac, mas já impressionava, com uma dramaticidade tolstoiniana. A cadeira abriga-lhe em diversos momentos, com movimentos circulares, nunca completando uma volta inteira, somente fitando sua pilhagem, já que imaginava ser um raptor de conhecimentos, que deveriam estar não relegados a ambientes isolados, mas sim, servindo de pasto a devoradores literários. O céu se torna nublado, no momento em que da janela, solta alguns baforadas de um cigarro já no fim, lançando com movimento de peteleco, a guimba em brasa, que rola na sarjeta no quintal, parando próxima a grade da canaleta, como se hesitasse em se jogar esgoto abaixo. Parando e pensando o quanto fogo e papel são uma combinação sedutora, que uma simples faísca poderia consumir anos de garimpo livresco.

Não chegara a ler todos os exemplares, alguns, apesar de ter lido, nem se lembrava do que se tratava. Sabia que não daria conta de todos ao longo de sua curta vida. Ainda assim, matinha um preciosismo, não deixando que outras pessoas adquirissem um livro sequer, já que o fantasma da não devolução o assombrava. Mesmo não os lendo, a visão de tê-los era algo magnífico, feito um colecionador que a cada dia, necessitava ter sua ânsia de consumo satisfeita. Os espaços entre cada um dos livros, fazia conjeturar a possibilidade de encaixe de novos exemplares nas frestas que se insinuavam. Cada lacuna era vista como uma necessidade em ser preenchida. Mesmo quando folheava as páginas, não se contentava com os espaços entre caracteres, ou mesmo uma folha em branco, o que fazia muitas vezes, de forma maquinal, grafar alguma inscrição, nem que fosse um leve sublinhar.

O tempo nesse templo era ignorado. Imerso em meio ao aroma de mofo, misturado com traça e papel recém folheado, com fragrância de impressão nova. Existiam revistas, folhetins, mas os livros imperavam, ocupando quase a totalidade do espaço, além de consumir por inteiro a imaginação do guardador. Capas eram cuidadosamente restauradas, marcadores afiados dividiam páginas com precisão cirúrgica. Nomes de autores eram repetidos como se fossem membros de sua família, com intuito de causar alguma aproximação mais íntima. O toque leve das mãos fez com que um dos volumes desabasse ao chão, amassando a beirada da capa dura, provocando uma repreensão contra si patética. Os olhos voltados para o chão, agora encaravam a cama, onde tantas vezes dormira, abraçado a um a obra. Mais foi lido por elas, do que elas lidas por ele.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 06/10/2012
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