A Insanidade é uma Dádiva

Já é quase o mesmo horário de ontem, sendo que o de hoje nunca é o mesmo de outrora, já que o tempo segue modificando através da repetição da diferença. Diante do espelho é possível ver a sombra de pelos sobre a pele do rosto, que quase posso contar, se não fosse o trabalho de separar um a um desses volumes capilares. Nunca se tem olhos quando encara a si mesmo, já que no máximo, teremos uma impressão daqueles globos brilhantes que dizem tão pouco, por não expressarem nada. A boca ainda sente o gosto da maçã mordida, abandonada em seguida, feito um pecado expurgado pelo consumo do fruto proibido. Mas qual fruto é o permitido? Já que plantamos o que colhemos no ditado, mas no comércio em geral, colhemos sem plantar e na maioria das vezes, nem sabemos de onde veio brotar. A cegonha da produção que nos entrega em casa,m através de portadores anônimos, os resultados de dura labuta, que levam muitos chefes de família a perecerem precocemente. Não o perecimento da morte simples, mas da morte em vida, quando não se tem mais expectativas.

Ajeito a cadeira, que se eleva, mas em seguida torna a descer, como se impusesse a mim sua vontade de queda. Meu corpo se entrega ao efeito do assento. Muitas vezes na vida somos tragados por algum efeito, o que por sermos newtonianos inveterados, faz com que sejamos reduzidos a fórmula primitiva do “ação e reação”. A reação não seria uma outra ação, sendo que antes pensarmos em atos isolados, do que interligações cosidas com perfeição. É nos pelos da barba que vejo a falta de padrão, nos olhos estrábicos que não tentam harmonia. Esse caos que tanto encanta e surpreende. Os buracos desses poros me remetem a outras dimensões, que a vista ignora, adentrando essa superfície que teima em me esconder de mim mesmo. Me insinuo feito essa camada de poeira que a mão faz escorregar, transformando em pequenos tufos amontoados em um canto. Somos esses tufos, enrolados por essa força que tende a espalmar essa vida que se espalha nesse plano infinito.

Ontem fui surpreendido ao ver uma pessoa sorrindo, parecendo mostrar os dentes em uma forma de afronta. A gargalhada me soou como um soco no estômago, já que o rosto dos outros presentes era de sofrimento. É preciso realmente ser muito triste para chegar a gargalhar. O eco da risada é sempre um fantasma que assombra ouvidos longínquos. Como admiro os cães que ignoram essa malícia nos lábios, no máximo arreganhando suas mandíbulas ou estendendo uma enormidade de língua, que pinga suor, como se babasse pelo calor da vida. Sempre que me pego babando, penso estar envolvido em algum surto epilético. A sanidade dos outros animais se tornou nossa maior loucura. Nessa hora de sol carrasco, chego a quase erguer as mãos ao céu, mas o obscurecimento da vista não faz diminuir o atrito dos raios na pele, além da inutilidade de apelo divino, já que o astro rei se faz indiferente a nosso apelo.

Não sei mais quando amanhece. Já que os pássaros piam além da aurora, fazendo com que saia da alcova sombria, me deparando com a luminosidade que invade cada fresta, rastejando entre brechas que acolhem sua petulância. Uma vez vista a resta, sou contaminado por essa luz, tendo as pupilas afetadas. Que ser visual eu sou. Abusando do tato, dedilho o cabo de uma vassoura, simulando cordas de um instrumento musical, enquanto o som alto me impede de imaginar, sigo apenas a mecânica que o ritmo impõe. A síndrome de destruição faz passar um pensamento, que causa um leve sorriso nos lábios, com a cena de utilizar o objeto como bastão, acertando alguns utensílios de vidro e espatifando-os, já que a necessidade da fragilidade está em ser rompida, feito um hímen em busca daquela agressão que impele a vida. Realizar na mente não é como a materialização das conseqüências. Em nossa cabeça, deixamos contidas as nossas próprias personas, já fora de nós, escapa daquela centralidade cerebral, repercutindo efeitos, muitas vezes danosos ao criador. A ideia de deus, poder tudo, por tudo ser fruto de seu poder. Destruir tudo para refazer, feito quebra-cabeças, atrapalhando para ter de novo a felicidade de ver a figura pronta. Saber da imagem, não te faz com que perca a empolgação de montá-la novamente, até traçamos estratégias de agilizar a montagem. As pessoas são peças soltas, por isso a necessidade de acasalamento, para que os corpos voltem a se conjugarem.

Esquisito o dia, já que contabilizo sem me dar conta de quando passa. Ontem foi e hoje que fui perceber. Talvez não possamos perceber esse instante, hoje já falo com propriedade do ontem, ainda que não tenha sobrado mais nada dele, mesmo eu me tornei um outro. Agora que reparei, sempre sou outro pra mim, me vendo a partir de um fora que estabeleço na relação desse eu comigo. Esses tantos outros que chamo amigos, conhecidos, parentes, captam outras formas desse outro intitulado mesmo. A crença de que sou cada um desses que me fazem ser. É, eu sou cada um deles, na perspectiva de impressão de cada um desses, bem como eles são da mesma forma na maneira como os compreendo. Em meio a proliferação de identidades, ninguém sabe dizer quem é, ou mesmo o que seja. Mais uma vez interrompido, por esses pelos que coçam. Todos nós coçamos, daí o incômodo de estarmos aqui. Digo estar por força do hábito, mas sempre me sinto suspenso, sem que nada me segure, pareço obscurecer a gravidade, flutuando aos solavancos, nunca objetivando nada, a não ser esse movimento que faz de mim uma marionete sem fios para puxar.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 06/10/2012
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