Faluas (*) do Douro...

Notas do Autor:

pB- português do Brasil

pP- português de Portugal

(*) Embarcação de boca aberta, proa e popa afiladas, com dois mastros e velas latinas triangulares, usadas para transportar mercadorias e pessoal em portos, rios, etc.

Quase primavera no hemisfério norte. Com o bom e solidário tio Albano, Gabriel e Sofia conseguem a chave daquele sobradinho na Cidade do Porto, ali, nos altos da Ribeira, onde predomina a arquitetura românica, e um ar de nostalgia para quem, por um motivo ou outro, teve de deixar para trás a “santa terrinha”...

Da janela do pavimento superior, via-se o Rio Douro, verde como as esmeraldas de Minas Gerais, sereno e constante na sua obstinada carreira rumo à foz, para só dali, então, ganhar o primeiro dos sete mares...

Mais ao longe, na outra margem, era possível avistar-se a serena Vila Nova de Gaia. À noite, invariavelmente, salpicada de luzes... E, durante o dia, às vezes iluminada pelo sol, outras, coberta pelo manto branco dos nevoeiros, que, vindos do rio e do mar, estendiam-se terra adentro.

Ali, os vinhos da região norte de Portugal amadurecem, envelhecem, tornam-se sábios...

ABRIL 24, 2005. Domingo. Véspera de feriado nacional. Em poucas horas, o país celebraria mais um aniversário da Revolução dos Cravos, que, no distante ano de 1974, pusera fim a quarenta e oito anos de ditadura. Uma festa portuguesa com certeza, a mais bela dos oito séculos da história política do país. O povo festejava, distribuía nas ruas todas as cores da flor símbolo da pátria. E a festa foi pra lá de bonita, pá!!! Liberdade já não era apenas o nome de uma praça no coração da velha cidade.

(Trinta e um anos se passariam...)

A Cidade do Porto era agora, em 2005, um imenso canteiro de obras. O metrô conquistava espaços pelas estreitas ruas que levavam à Avenida dos Aliados, passava pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luis I, e, dali, feito um comboio de brinquedo, seguia rumo ao Parque Serralves, de onde, só mesmo com os olhos é possível, acompanhar-se o multicolorido deslizar dos caiaques que não param de correr, ora rio acima, ora rio abaixo...

Depois de acomodarem as malas, e, já devidamente familiarizados com a beleza da paisagem, Gabriel não se contém:

“Vamos logo, Sofia, vamos que a Cidade do Porto está à nossa espera”.

“Está bem, está bem”, concorda Sofia, “Arrumamos tudo quando voltarmos”

Desceram as escadas de madeira da aconchegante moradia, e, no pequeno hall de entrada, havia um espelho, um cabide e um chapeleiro. Sofia saiu primeiro, Gabriel logo a alcançou.

Uma senhora, por certo, com muitas histórias para contar, apoiando-se em uma bengala, mas, aparentando boa disposição, sai de uma daquelas casinhas geminadas, aproxima-se, e, sem muitas formalidades, como se todos ali já fizessem parte de uma grande família, dirige-se a ambos:

(pP) “Ah! Então os meninos chegaram do Brasil, e o senhor vosso tio, Albano, como está ?”

(pB) “Está tudo bem, senhora, senhora...”

(pP) “Tereza, mas cá, todos chamam-me Terezinha.

Sofia, sempre simpática e carinhosa, logo conquistou a confiança e afeição de Dona Terezinha, que, em seguida, entrou numa daquelas portas que pareciam dar acesso a algum túnel do tempo, onde a luz do dia não ousava entrar, e a vida caminhava na velocidade do claudicante compasso dos passos de Dona Terezinha.

Eram muitas as portas, muitas eram as cores e tantos outros eram os seus mistérios... Quando entreabertas, era possível avistar-se os infindos e estreitos corredores de pedra granítica; dos segredos, contudo, nenhum vestígio. Pareciam guardados a muito mais de sete mil chaves...

“Bem, então vamos”, disse Gabriel, já olhando para a escadaria que os levaria até os baixos da Ribeira. E completou,

“Espere um pouco, Sofia, a chave ficou do lado de dentro, e eu não consigo mais abrir a porta.”

Olharam para a fachada da casa, e viram que uma das janelas do pavimento superior havia ficado entreaberta..

(...) Menos mal, pensou Gabriel, enquanto tentava absorver o aroma e todos os sentidos que a bucólica e aprazível paisagem lhes oferecia.

E completou, “Já sei Sofia, vamos pedir à Dona Adelina que nos abra a porta.”

“Boa idéia, Gabriel. Ela mora aqui ao lado, vamos lá antes que anoiteça.”

Andaram alguns poucos metros e logo chegaram à casa que, como tantas, acompanhava o mesmo estilo arquitetônico; portas de madeira e paredes de granito, e, no alto, ao sabor do vento, os multicoloridos varais a regalarem-se com o brilho e o calor do sol, a revelarem intimidades de quem Gabriel e Sofia desconheciam, ou, mal sabiam existir...

Dona Adelina era uma espécie de caseira e administradora do imóvel, alguém em quem o tio Albano depositava total confiança...

Já incomodada com o problema da chave, e, querendo abreviar o diálogo, Sofia foi logo falando...

(pB) “Sabe Dona Adelina!? a chave da porta ficou do lado de dentro, e nós não conseguimos mais abri-la... Todos os nossos pertences estão lá, e, como sabemos que a senhora tem uma cópia, viemos lhe pedir que fizesse o favor de nos abrir a porta.”

(pP) “Quanto a isso não precisais vos preocupar, meus meninos. O problema é que... se a outra chave estiver por dentro, nem o Bom Menino Jesus de Matosinhos, ou até mesmo Nossa Senhora de Fátima a fará abrir. Mas, não custa nada tentar. Vamos lá.”

Foi quando Gabriel, em silêncio, sem que ninguém percebesse, apelou a todos os santos católicos e a todos os orixás que no Brasil conhecera, e até com os dedos dos pés fazia figas para que tudo acabasse bem, assim como nos filmes do lendário cavaleiro Ivanhoé, do elegante e gentil Batmasterson, ou do versátil e imprevisível agente James West.

Mas, a verdade é que Dona Adelina, sem dizer palavra, já parecia saber que nada daquilo adiantaria. Dito e feito. A “insensível fechadura” nem se mexia.

Nesse momento, como se saísse de uma página de um livro da História recente do país, surge um senhor de estatura mediana, cabelos grisalhos, óculos escuros tipo Baush&Lomb, vestindo uma camisa social, impecavelmente passada, sob o colete azul marinho e um par de suspensórios coloridos.

Senhor Vitorino era proprietário de um pequeno Café contíguo à casa, que, além de uma sofisticada diversidade de chás, cafés e sucos naturais, também servia os deliciosos pastéis de Belém. Disposto a resolver logo o problema, o pragmático Senhor Vitorino, como se pensasse em voz alta, deixa escapar um breve comentário:

(Pp) “Pois é, se tivésseis uma escada, poderia um de vós entrar pela janela e abrir a porta por dentro.”

(pB) “É isso mesmo, senhor Vitorino. Só precisamos de uma escadinha, nem precisa ser muito alta.”

(pP) “Pois, a questão é precisamente essa. Além de nós, hoje, tu não achas uma “viv’alma” na rua, quanto mais uma escada...”

Gabriel logo sentiu que o problema, embora aparentemente simples, não seria de fácil solução...

Sofia, sentada na soleira da porta, depois de 11 horas de viagem, só queria entrar novamente na casa, tomar um banho, trocar de roupa e sair para ver se a noite sob a ponte D. Luiz I era de fato tão bela como exibiam aqueles cartões postais, traduzidos em vários idiomas...

Foi quando o prestativo Senhor Vitorino, parecendo querer quebrar a monotonia de um domingo, véspera de feriado nacional, sentenciou:

(pP) “A única solução que vejo, é chamarmos os bombeiros.”

(pB) “Mas, senhor Vitorino, eu só preciso de uma escadinha, veja, a janela está semi-aberta.”

(pP) “Eu sei, eu sei meu rapaz, mas tu tens a escadinha?”

(pB) “Claro que não, senhor Vitorino.”

(pP) “Eu também não tenho, nem a Senhora Dona Adelina, e já que ninguém a tem, ou chamais os bombeiros, ou ides passar a noite aqui a ver o rio a correr para o mar.

E, em seguida, emendou;

(pP) “Então, o que me dizeis? Posso telefonar para os Bombeiros?”

Desolado, Gabriel olhou para Sofia, que já revelava uma justificável impaciência, pois via um problema corriqueiro, transformar-se em um caso de Segurança Pública.

(pB) “Claro, claro, por favor, se não há outra solução.”

Já não havia mesmo o que fazer. Gabriel e Sofia teriam de aguardar a chegada do Carro de Bombeiros, cujo quartel estava localizado a poucas quadras dali. Gabriel jamais ousaria desafiar as rígidas leis do país, dar uma de homem aranha, e sair escalando a parede até chegar à janela do piso superior, para, só aí, então, ter acesso ao quarto...

Depois de alguns poucos minutos, o Senhor Vitorino retorna à cena do incidente e dirige-se aos recém-chegados viajantes:

(pP) “Agora só nos resta esperar.

(pB)“E o senhor acha que vai demorar muito, senhor Vitorino?”

(pP) “Bem, tanto pode demorar 10 minutos, como uma, ou duas horas. Às vezes demora até mais, mas, como hoje está tudo assim meio parado, não acredito que seja para tanto...”

Gabriel, que nem pensava em perder o bom humor, achava que se tivessem de esperar meia hora, seria um tempo mais que razoável, enquanto isso, desfrutariam da paisagem que dali lhes era possível alcançar.

Depois de aproximadamente longos 40 minutos, surge, em marcha lenta, um furgão com cinco bombeiros a bordo. Exibiam em suas mangas as respectivas patentes. O sargento foi o primeiro a descer, depois o cabo e a seguir mais três bravos soldados. Olharam para a janela, e o simpático cabo, então, dirige-se a Gabriel:

(pP) “Pois bem, agora que cá estamos, vamos ter de esperar”

(pB) “Mas esperar o quê!?, disse logo Gabriel. “Se o Sr. me emprestar a escada, eu mesmo posso subir e abrir a porta por dentro.”

(pP) “Não, não é assim que as coisas aqui se dão, meu rapaz. Quem me diz que tu não és um ladrão !?”

(pB) “Como ladrão!? Eu sou sobrinho do tio Albano.”

(pP) “Podias ser sobrinho do tio Abel, do tio Abílio ou do tio Antunes. O fato é que aqui a lei é assim.”

Gabriel logo concluiu...

(...) Isto deve ser uma herança do direito canônico, ou, então, do ultra-ortodoxo direito greco-romano, mas, já mais conformado, sabia que nada mais podia fazer, exceto esperar...

Era imprescindível um boletim de ocorrência para que um dos bombeiros pudesse adentrar a casa.

(pB) “Puxa a vida, os senhores aqui, perdendo tanto tempo por uma coisa tão banal”

(pP) “Não te preocupes, pá, que isto aqui é o prato do dia...”

(pB) “E o que é necessário fazer agora ?”, quase impulsivamente, pergunta Gabriel.

(pP) “Bem, agora, vamos ter de chamar a polícia, e, só depois de estarmos com o boletim de ocorrência em mãos, é que vamos poder entrar pela janela.”

Só restava a Gabriel, Sofia e aos próprios bombeiros aguardar a chegada da polícia. Enquanto isso, Gabriel e Sofia tentariam descontrair; ora contemplando a indescritível beleza da paisagem, ora tentando traduzir a indizível sabedoria do rio, que, alheio a tudo e a todos, não parava de correr para o mar...

E assim, o tempo ia passando, a tarde caindo, e ao longe, refletido no verde-garrafa das inquietas águas do Rio Douro, o mais belo pôr-do-sol que Gabriel e Sofia jamais haviam presenciado. Todavia, Gabriel, ainda atormentado com a falta da chave e a demora da polícia, parecia não dedicar à cena toda a atenção que ela merecia...

A rua de paralelepípedos terminava em uma escadaria de mais de quatrocentos degraus que levavam às margens do rio. Na verdade, eram 498 degraus, posteriormente contados com a paciência que só os turistas de primeira viagem têm...

Como em um filme de suspense, o breve silêncio é subitamente interrompido pelo ranger de um veículo em marcha lenta. Nunca uma luz azul, giratória e intermitente fora tão bem vinda. Uma jovem policial, então, estaciona, desce com sua prancheta, e, parecendo acostumada com tais ocorrências, põem-se a fazer perguntas um tanto formais, ao mesmo tempo em que anota os dados dos passaportes de Gabriel e Sofia.

Enquanto isso, os bombeiros, passivamente aguardam a liberação por parte da agente policial para só então, adentrarem a casa pela janela superior...

E o Senhor Vitorino e Dona Adelina, que a tudo assistiam, pareciam ter encontrado um passatempo ideal para aquela monótona véspera de feriado.

Feita a ocorrência, e, já devidamente assinada por Gabriel, a simpática policial informa-os de que, como não havia perigo iminente de incêndio, e que tudo não passara de uma mera prestação de serviço, o proprietário da residência deveria arcar com as custas de vinte euros a serem posteriormente cobrados pela prefeitura local. Depois disso, despede-se, senta-se ao volante, e, deixando um breve sorriso e uma saudação de boas vindas, retira-se com a sensação do dever cumprido.

Ato contínuo, um dos bombeiros encosta a pequena escada na parede, sobe até a janela, entra na casa, e, em poucos segundos, a porta está novamente aberta para alívio de Sofia e Gabriel.

“Puxa a vida, Sofia, não podemos mais deixar que isto nos aconteça... Todo cuidado agora será pouco.”

“Temos de seguir o conselho de Dona Adelina, e andar com a chave pendurada no pescoço, como se fosse um colar, Gabriel.”

“Estou certo de que outra como essa não nos há de acontecer. (...) Que tal ligarmos para o Brasil e contarmos ao tio Albano o que aqui se passou!?”

“Acho melhor deixarmos isso para amanhã, Gabriel.”

“Então, vamos abrir um bom vinho verde, fazer um brinde à nossa chegada, a este amado país, e à inefável beleza do entardecer.”

“Eu vou pegar as taças, ali na cristaleira.”

Gabriel, que não tirava os olhos da janela, não pensava em outra coisa, a não ser, repartir com Sofia, o que, naquele momento, só a ele era dado saber:

“Venha logo Sofia, venha, venha ver como navegam serenas e determinadas as faluas do Douro ...”

FIM

Conto de Zizifraga.

Fevereiro de 2008.

Reeditado em setembro de 2012

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 13/10/2012
Reeditado em 14/11/2012
Código do texto: T3930531
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