Um certo olhar

Um certo olhar

Luciana contava os dias que faltavam para o final do ano. Dezembro para ela tinha um sabor especial. Sua mente ficava carregada de lembranças, pareciam frutos maduros de árvores frutíferas, pendurados e frágeis, que poderiam cair com uma simples lufada do vento. Lembranças, e mais lembranças, povoavam sua mente, e no fundo daquele grande emaranhado, algumas se destacavam com mais nitidez. A Festa Natalina no Lar era uma delas. Recebia sempre os presentes de uma benfeitora anônima, que lhe trazia muitos mimos, brinquedos e roupas. Não a conhecia pessoalmente, só sabia de sua existência, através da chegada dos presentes, e das cartinhas e cartõezinhos que ela enviava pelo motorista. Quando tinha quinze anos, a viu pela única vez, e guardou para sempre aquele olhar. Ela esteve rapidamente no Lar e falou com a madre superiora. Viera pessoalmente trazer os donativos costumeiros e especialmente dar instruções para a festa de quinze anos de Luciana. Era uma jovem mulher elegante, alta, magra e loura. Tinha olhos azuis e muito tristes, que se iluminaram ao ver Luciana entrar na secretaria, onde estava conversando com a madre superiora. A madre apenas informou a Luciana, que aquela era sua benfeitora, sem dar maiores informações. Luciana teve vontade de correr e abraçá-la, agradecer-lhe pessoalmente todos os benefícios que recebia ao longo daqueles anos, mas a altiva mulher, num instante desviou o olhar que tinha um brilho profundo e voltou a falar mansamente com a superiora da instituição.

O Lar tinha sido sua casa, sua escola, e boa parte de sua vida passou lá. Até o inicio da adolescência, conservava no coração, a esperança de ser adotada. Algumas de suas companheiras de infância, que se tornaram amigas na mocidade, tiveram a alegria de encontrar uma verdadeira família. Luciana, rezava, rezava, rezava e suas preces jamais foram atendidas. Antes de completar a maioridade, foi orientada a frequentar um curso profissionalizante de corte e costura, pois seus primeiros trabalhos de costura quando ainda era bem pequenina chamavam atenção pelo bom gosto nos acabamentos e na forma que combinava tecidos e aviamentos. Ao completar vinte e um anos, Luciana foi morar com uma velha conhecida sua professora de música, que conhecera aos oito anos quando começou a cantar no coral formado pelas meninas do Lar. Dona Aretusa era viúva e não tinha filhos. Os primeiros meses fora do Lar foram de muita alegria e muita tristeza, pois Luciana sentia falta da rotina antiga. Por outro lado, encantava-se com as novidades que experimentava. Com a ajuda de Dona Aretusa, foi fazendo clientela no bairro. As primeiras freguesas eram as mães das alunas de Dona Aretusa, que ficavam muito satisfeitas com seu corte e modelagem. Os preços eram modestos, e quase não tinha lucro. Trabalhava arduamente, pois era de espírito independente e queria recompensar a bondosa senhora por tudo que ela lhe proporcionava. A possibilidade de ter um quarto só para si, e outros pequenos detalhes. Depois das mães das alunas de Dona Aretusa, foi à vez das meninas adolescentes começarem a pedir seus serviços. Finalmente, Luciana não tinha mais tempo para aceitar trabalho que não fosse agendado com meses de antecedência.

Oito anos se passaram, Dona Aretusa ficou muito doente, e teve que ser internada repentinamente. Luciana passou momentos difíceis e de solidão. Não conhecia todos os parentes da amiga. Largou o trabalho em seu ateliê com uma gerente que acabara de contratar e ficou ao lado da amiga até o momento final. Após o funeral, quando ia descendo uma das ruas do cemitério, acompanhada por duas amigas de infância que também tinha sido alunas de Dona Aretusa. Ela avistou ao longe o mesmo olhar azul que tinha visto certa vez há alguns anos, dias antes de completar quinze anos. A distância era pequena, mas ela percebeu na profundidade de suas lembranças e a intensidade daquele olhar em sua direção. Do outro lado, o mesmo motorista, agora já velho a acompanhava, ajudando-a, dando-lhe o braço para que ela caminhasse com mais facilidade.

Luciana instintivamente aproximou-se da senhora e percebeu que ela vinha ao seu encontro. Luciana não tinha dúvidas, era sua benfeitora madame Brigitte. As duas amigas se aproximaram curiosas. A senhora disse baixinho e discretamente algumas palavras ao ouvido de Luciana, e logo se afastou, porém, antes lhe entregou um pequeno cartão.

Luciana voltou para casa envolta numa névoa de tristeza e solidão. Outrora, os sons do piano e as vozes das alunas de Dona Aretusa, enchiam o ar com tanta vibração e energia, que Luciana, sentiu pequenos arrepios pelo corpo todo. Gostaria tanto de ter alguém para conversar. Foi até a bolsa e encontrou o pequeno cartão. Ficou alguns minutos pensando se deveria ou não telefonar. A curiosidade, quase que infantil, foi maior e ela ligou. Do outro lado a voz de uma empregada, pediu que ela esperasse que ela fosse chamar a Madame.

Conversou com a senhora alguns minutos e ficou surpresa com as notícias que ela despejou de uma só vez. Disse para Luciana que havia tomado conhecimento de seu trabalho como costureira e gostaria de encomendar algumas roupas. Foi tão convincente em seu pedido que no dia e hora marcados Luciana estava na mansão da misteriosa senhora. Sentiu-se, estranha em ambiente tão luxuoso. Passou algumas horas naquela mansão e quando saiu de lá sentiu que sua vida tinha mudado completamente. Chegou a casa, com a cabeça fervilhando com tanta coisa que tinha ouvido. Foi procurar sua caixa de lembranças. E ficou lá olhando, cada detalhe que guardava com carinho. Algumas velhas fotos, alguns desenhos que tinha feito na adolescência. E lá encontrou um retrato que tinha feito de sua benfeitora madame Brigitte. De repente, sentiu um calafrio percorrer lhe a espinha. A verdade dos fatos era dura de encarar. As feições da senhora eram idênticas as suas. A curva das sobrancelhas, o nariz muito reto, a boca de lábios muito finos e grandes. Só os olhos tinham uma diferença. A senhora tinha olhos muito azuis e Luciana os tinha num tom castanho dourado. Uma súbita certeza fulminou sua mente. Madame Brigitte seria sua parenta? Podia ser sua tia, sua prima, irmã? A certeza era mais profunda. Luciana sabia, era sua parenta, sim, mas não era nem tinha nem prima, nem irmã. Era sua mãe. Junto com a verdade que sempre vence qualquer mistério e com sua luz rasga qualquer véu, veio à mágoa, de nunca ter recebido uma visita, um gesto de carinho, uma conversa, uma troca de confidências. Velha ferida abriu-se em seu peito de forma tão rápida e devastadora que naquela noite Luciana não conseguiu conciliar o sono. Na manhã seguinte foi visitar a velha anciã, aquela que outrora tinha dirigido por décadas o Lar que abrigara Luciana. Ela estava muito doente e bem velhinha, mas lúcida. Recebeu Luciana com a mesma doçura com que sempre a tratara. Confirmou as suspeitas de Luciana, que só não entendia porque sua mãe não a levara do lar, ainda quando era criança e só agora, tinha revelado tudo. A velha superiora apenas esclareceu: - Não é você que precisa perdoá-la. Ela mesma precisa encontrar o caminho de volta para Deus. Eu sou testemunha que ela tem tentado durante estes anos. Não a condene. Ela está às portas da morte com uma doença terminal. Ela quis torná-la uma mulher independente e respeitada que ganhasse seu sustento com seu próprio suor e não se tornasse o que ela foi durante um bom tempo de sua vida. Uma prostituta de luxo e depois quando já não podia mais ganhar dinheiro com sua beleza, tornou-se empresário do ramo.

Após ouvir tudo o que a madre lhe contou Luciana foi para casa e jurou nunca mais se aproximar de criatura tão nefasta e indiferente ao amor. O Natal estava muito próximo e Luciana resolvera conversar com a nova superiora do Lar, que estava disposta a adotar duas meninas gêmeas, Aline e Alice. Na manhã de Natal, ela fez uma cesta de guloseimas e foi até o lar para visitar sua antiga casa. Ficou lá com as meninas, contente por dar-lhes a boa notícia que a adoção já estava quase legalizada. Almoçou lá mesmo, e a tarde, saiu na companhia das duas meninas e foi visitar a madre. Mais uma vez, ouviu os conselhos da madre, para perdoar e ir visitar madame Brigitte. Luciana não teve coragem de voltar naquela mansão. Certa manhã do ano novo estava caminhando com suas duas filhas pela mão para levá-las a escola pela primeira vez, encontrou o motorista na porta do colégio das meninas. Ela deixou as meninas e quando já estava saindo pelo portão esbarrou com Senhora a sua frente. Caminhava ereta e altiva e disse sorrindo para Luciana: - Aquelas são as minhas netas? Luciana deu-lhe as costas impulsivamente e cheia de angústia, mas logo, voltou-se, pois ouviu o baque de um corpo caindo no chão. Ela abaixou-se para ver o que podia fazer, já era tarde, avistou pela última vez aquele triste e profundo olhar azul que jamais conseguira esquecer-se desde a primeira vez que o fixara.

Aradia Rhianon
Enviado por Aradia Rhianon em 22/10/2012
Reeditado em 30/07/2016
Código do texto: T3946985
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