CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ANOS DOURADOS

Considerações sobre os anos dourados

Nos anos cinqüenta do pós-guerra (fato sobre o qual eu não me dava muita conta,era pequena), meu pai foi convidado para trabalhar numa usina de açúcar no interior do estado de São Paulo. Quando fui para lá, após os exames finais na capital, ele me aguardava em Campinas. Junto com ele, estava um seu funcionário de nome Erbolato. Não me lembro do primeiro nome. Ficou sendo, para sempre, Seu Erbolato. O Seu Erbolato, a Dona Cinira, a Dona Lourdes da farmácia, Seu Vitorino, o Seu Itagiba e o Dito-Pinha; a Maria Therezinha, a Dona Aracy, o Vadô, são fiapos de memória de um Brasil daqueles anos cinqüenta. Talvez pela guerra recém terminada, talvez pelo cansaço, talvez só pelo talvez, era um tempo de esperança paciente, calma e crédula. Você ainda podia fantasiar que homem nascera só para fazer coisas boas.

Por exemplo; você podia contar mais com a hospitalidade; pelo tempo que era mais gordo, pelos hábitos de civilidade, ou pela própria delicadeza de caráter a hospitalidade não possuía R.G., conta bancária, celular, carro importado, microondas. Você chegava e pronto. Já ia tomar café fresquinho e mastigar sequilhos. A Dona Lourdes da farmácia, por exemplo, oferecia café e bolo e convidava você para ir apanhar mangas no quintal. Era boa - por ser boa. Acho que não se dava conta disso. Era gentil como lavava as mãos, como esticava as balas de alfenim, como servia o bolo de fubá quentinho sobre a mesa de toalha xadrez vermelha e branca, como costurava meu botão de blusa que caiu; como, quando fiz a primeira comunhão com dezessete anos em função do ateísmo de meu pai, me esperou com um bolo confeitado, lágrimas atrás do lencinho bordado de florzinhas azuis. Dona Cinira fritava bolinhos para o café da tarde e ouvia com delicadeza histórias da minha meninice. Era tímida e delicada. Tímida e paciente. Tímida e de boa índole, como diziam. Seu Erbolato cuidou de minha avó até a sua morte, sob um câncer devastador. Sua compaixão despretenciosa era quase um acinte. Seu Itagiba ria por rir. Com o espírito. Acho que ria porque resolveu que aceitaria tudo da vida. Nos carnavais, sozinho, jogava um punhadinho de confete em cada folião. De vez em quando, cantarolava: - Se parar esfria! Se parar esfria!!. Seu Vitorino passava filmes no cinema da usina; às quintas, sextas e no fim de semana. - Seu Vitoriino!! Que filme vai passar hoje hein?? - Hoje é bão mermo... casar de mutim - não era - era o Grande Motim - A gente ria, ria. Tinha um olho só, o Seu Vitorino. Com um olho só passou tantos, tantos, filmes!! Alguns de cabeça para baixo. Aí o pessoal gritava: - Uai! Tá torto!! E a gente ria, ria. Nosso cachorro também ia ao cinema. O Sheik. Era bravo, o Sheik. Dias de bom humor, uma folhinha entre os dentes que é para que você corresse atrás dele. Sem mais nem menos, rosnava quando você chegava perto. Como qualquer ser humano. Esperava pela família na estrada com saudade paciente, quando voltávamos da capital. E essa saudade, uma tarde, o atropelou. Teve que ser sacrificado. Ao ouvir o tiro que o matou, o vida se encolheu, o mato tombou aflito, a meninice foi indo embora. Do Dito Pinha, só me lembro que vivia com um chapéu e um guarda-chuva grudados nele - Tarrrde Só dizia isso. Aparecia e desaparecia pela magia de uma época em que o sací-pererê ainda podia circular mais livremente. Fazia parte da paisagem, como os flamboyants que arrebentavam em setembro, como o sem-fim verdolengo dos canaviais, a ponte velha de restilo, a usina que resfolegava ao sol que cismou de morar lá, os animados vagalumes do fim de tarde, lagartixas idosas, a charanga amarelinha do Vadô que levava a meninada para a cidade.

Quando cheguei naquele dia em Santa Bárbara d''Oeste, chovia uma chuva de verão. E, como o homem ainda não sabia mexer muito bem com a ganância, a chuva, naquela época, era chuva mesmo. Nela, você podia molhar os pés nas poças com felicidade, sentir o cheiro do mato curioso e refrescado, apreciar os passarinhos arrepiando as penas como criança no recreio, a terra que bebia a água aos goles; se quisesse, podia ver o Cristo de braços tão abertos à entrada da usina, a água escorrendo por seu rosto jovem ou as ruas de pedras antigas que soltavam um vaporzinho quente. Assim foi, quando cheguei na cidade pela primeira vez. E, como tudo estava tão lavadinho e limpo, como vi o sol me beliscando com malícia e as folhas das árvores que falavam sem parar, senti que ia renascer. Quem primeiro conheci em Sta Bárbara, foi a Therezinha Fonseca. Conservamos até hoje, uma amizade que superou abismos e contradições, separações e encontros; ainda a vejo arruivada e rindo, com seus vestidos de tule. Com a Therezinha, conheci Dona Aracy; que costurava nossos vestidos godê guarda-chuva, sobre as anáguas brancas de três babados, bem, bem armadas. Na sua casa também se tomava café. Dona Aracy sorria um sorriso largo e tinha os seios fartos da mãe-terra.

Naquela época, procissões e enterros seguiam padrões precisos. Quando minha avó morreu, por exemplo, os sinos da matriz tocaram solenes, os transeuntes pararam e fizeram o sinal da cruz, os comerciantes cerraram as portas, os homens tiraram o chapéu em sinal de respeito. A morte era uma conhecida sagrada. Ninguém deixava o morto sozinho, que era para ele não se sentir tão triste e preocupado com o caminho a ser seguido. Como eu já comentei em algum lugar antes, nos velórios servia-se café e bolo durante a madrugada. Rezava-se terços compridos que se enrolavam nas mãos compungidos, velas piscavam meio aflitas ao amanhecer enquanto o morto ia tomando uma cor amarelada de quem já não está aqui e nem se importa. Acho que por questão de civilidade, curiosidade, medo fé ou resignação a morte era mais respeitada - como uma velha senhora - muito rica em títulos adquiridos ao longo dos séculos - e que morava num palacete grande, grande cercado de ciprestes que uivavam nas noites frias. Nada sabíamos sobre os inquilinos dessa mansão; as cortinas das janelas escuras, estavam sempre tão cerradas! Diziam que só os gatos, por serem tão indiferentes e articulados, a conheciam melhor. E que por esse pormenor ficaram com os olhos amarelados; para enxergar melhor as vielas por onde ela passava tão magra, em sua carruagem pela noite fria - Fizeram então um pacto - eles continuariam a vagar pelos telhados fingindo que não a viam, e ela, em troca, lhes daria sete vidas. Vi o pacto ser cumprido com o nosso gato, o Micho. Antes de morrer, ele estendeu a patinha sobre a mão de minha mãe e fechou os olhos; o acordo fora desfeito.

Portanto, a morte era com o saci-pererê que escondia o retrós de linha, a mula sem cabeça que corria pelos campos atrás dos incautos, o curupira que protegia as matas e animais do Brasil, o boto que seduzia as moças sonhadoras, o boi-tatá que assustava criança que não queria dormir. Assim era a morte. Fazia parte da vida. Nem era tão violenta; bem mais calma. Dava para encomendar a alma aflita, para rezar e para pedir que o caminho do moribundo fosse de areia fofa, que os pecados, pecadilhos, e pecadões fossem relevados, dava para fazer tudo isso. Também se podia sonhar. Sonhos de profissão, casamento, filhos, projetos. E nas festas de Sto. António, São João e São Pedro, o céu jogava apressado um manto negro e bordava às pressas um monte de estrelas para esperar os santos. A dança da Quadrilha, era obrigatória. De repente, a alegria era tão espontânea e ingênua que a lua estendia a mão branquinha e me fazia espirrar. Namorar, também fazia parte do tempo. Namorar nas festas do colégio, no jardim em volta da praça, na matinê do cinema; e o amor, naquela época, ainda caminhava meio distraído e suado junto aos vestidos de tule, a gravata borboleta, a fanfarra, as balizas, a farmácia do Zé Renato, ao cheiro de laquê e brilhantina, aos professores cuja esperança ainda era mais decente, as primas Joyce e Cuca que vinham de São Paulo, as mangas do quintal dos Faffenbach, ao intervalo das aulas, ao meu uniforme tão branco nos dias frenéticos de desfile, a casa grande que era tão, tão grande, às casas dos colonos com portinhas azuis, ao ribeirão Toledo tão pequeno, aos diários das meninas, as aulas de ballet com minha irmã Marli; mas também, se se preferisse, podia-se viver; com patos neurastênicos, com os cavalos do haras, tão independentes e com os cavalos das carroças, cuja sorte foi mais madrasta; com os cães fiéis e mau-humorados, fiéis e bem-humorados, fiéis a sua sina, fiéis e vagabundos; com gatos indiferentes, mal-amados, desconfiados ou, ligeiramente pedantes; com os coelhos meio burrinhos, gafanhotos que trabalhavam no circo e louva-a-Deus que não louvavam nada, era tudo farsa. Podia viver com os grilos que trabalhavam numa orquestra perto do rio e com os vagalumes que gostavam de prosear ao cair da tarde. Podia viver com a Pitoca, abanando o rabo e correndo pelo jardim, ver minha mãe sorrindo, meu pai no piano, os irmãos crescendo. Tudo isso era amar... e dava tempo. Essa era, talvez, a maior dádiva. O tempo. Pertenci à época dos anos dourados, como dizem hoje. Nessa época, pós-guerra, em Santa Bárbara d''Oeste, no estado de São Paulo, havia esperança no mundo - talvez fugaz, efêmera, pueril e tola; moralista e, por vezes, cruel, como me dei conta mais tarde - em outros continentes, e no meu Brasil.

E, havia por certo a mesquinhez, o olhar e pensar miúdo, a escravidão escondida entre os arbustos de margaridas, a invalidez mental. Mas, havia a dita esperança. Que vem do verbo esperar; com alegria, mesmo ingênua e burra. Por ser uma esperança mais alta e robusta, a gente a enxergava melhor. Essa cidade, Sta Bárbara d''Oeste é como um celeiro onde a gente vai buscar as sementes; quando minha terra fica muito ressequida, vou para lá; relembro dona Cinira, Seu Itagiba, Dona Lourdes da farmácia, o Dito-Pinha e o Berto Lira; beijo Dona Aracy, a Terezinha e a Aliciene; abraço o Vadô; aceno para os namorados, para os professores no recreio, para as noites e os dias, para o sol e chuva; para os animais e insetos, para a vida. Eles também abanam a mão, ao longe. Pego o adubo e as sementes e volto - para plantar tudo de novo.

Regina Helena Sárapo,

Ex-moradora da Usina Santa Bárbara

Cronica alocada na Fundação Romi, em Santa Bárbara d `Oeste

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 26/10/2012
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