MULHER PRENDADA

Na manhã de 13 de novembro de 2012

Uma mulher antiga, para não dizer muito velha; uma mulher não prendada, das chamadas prendas domésticas; uma mulher só de prendas mentais, que na vida que leva não lhe servem para nada, as tais prendas mentais, pelo menos para nada objetivo, prático, essas coisas do dia a dia dentro de uma casa, que foram só as coisas que lhe restaram. Já dizia sua avó: “Quem não sabe fazer, não sabe mandar”, mas, ela não lhe prestou atenção, afinal, o mundo fora dos muros da casa era o único efetivamente real, o único em que se sentia potente e efetiva. E a sinhazinha velha, de impotência, de vergonha, quer às vezes morrer debaixo do sofá, que ela nem tem mais forças pra arrastar.

Se em vez de ter estudado letras e filosofia, de passar a vida a dar aulas, a fazer shows musicais, a lidar com teatro (o trabalho do seu ex companheiro, partilhado), a publicar livros, a se tornar o que a família chama pejorativamente de “ intelectual” (...) se em vez disso tudo tivesse estudado culinária, aprendido a fazer direito uma boa faxina, ter aprendido enfermagem e outras prendas que tais, poderia ela ainda sentir-se um ser útil no universo doméstico e dentro das impotências físicas que a não deixam mais sequer pegar um livro na prateleira superior da estante e – o que é muito pior – não lhe permitem pegar mais certos utensílios domésticos na parte superior do armário da cozinha. Claro, se tivesse ido construir, fora, a tempo, um espaço próprio, sua história pessoal poderia ter sido outra, mesmo que, por honra, tivesse que acabar voltando (e teria voltado) ao lar original, para tratar da genitora, na velhice desta. Uma mulher,a velhinha mais nova, em verdade covarde, acomodada, pusilânime (agora também sem Vontades), sem o direito de culpar ninguém por nada, também condenada a calar, em todos os tempos e tempo, sua língua estrangeira, sua língua de E.T, na infinita duração dos dias sempre interminavelmente iguais. Certamente, deve haver homens vivendo na mesma situação, mas, neste país machista e patriarcal por excelência, ninguém vai julgar um homem por não saber fazer faxina nem cozinhar. Ninguém. Não acontece o mesmo, no caso de uma mulher – na verdade, todos, homens e mulheres, deveriam ser capazes de fazer tudo, que não há tarefa superior a outra: o problema é quando o aprendizado de tal fato chega tarde demais.

Uma mulher velha afinal não completamente inútil: o homem da casa; o ser quem paga as contas; o ser que fica junto com a pobre mãe todos os tempos e horas da vida, ambas mergulhadas no silêncio mortal dos dias, a mãe que mereceria, certamente, ter algo melhor como filha. Pobre sinhazinha velha, pobre mulher-homem da casa que, além de tudo, tem um medo terrível de chuva. Que o Pai proteja, com suas asas, a essas duas pobres e tão solitárias velhinhas, enquanto o mundo bem ou mal - muito mais mal do que bem – continua a rodar lá fora. Todos os demais membros da família, também. Uma mulher que podem até chamar de impiedosa; só ela sabe que mais impiedosa do que com quem quer que seja, ela foi e tem sido impiedosa consigo mesma; mais do que isso: tem sido, sempre, a própria algoz. Aquela que se autocondenou à prisão perpétua, por culpas e responsabilidades próprias, não cumpridas; por responsabilidades não cumpridas por outros, também.

Bem... a velha mulher um pouquinho mais nova ainda sabe dizer as coisas certas, aos amigos, por telefone ... por e-mail (no que se relaciona às causas deles) mas, já nem tanto quanto antes sabia. Os amigos,quase a totalidade deles, não lhe sabem o que dizer, se quedam num silêncio dolorosíssimo, para ela e para eles. A velha mulher ainda consegue escrever e publicar desabafos. O terrível é que a velha mulher, a que é um pouquinho mais nova, já não consegue mais fazer qualquer plano, nem acalentar nenhum sonho para si mesma. Permanece, a seu modo, só fiel a vida e ao destino da própria mãe, dos jeitos que consegue e são poucos os jeitos que consegue. De qualquer forma, permanecerão ambas aqui, sempre juntas, como as raízes entrelaçadas de dois velhos carvalhos silenciosos e esquecidos.

“A benção, mãe”, diz, em pensamento, a velha senhora um pouquinho mais nova que ninguém, ninguém pode acusar de abandonar, de ter abandonado a própria mãe, quase completamente surda, mas, que não pode aceitar tal fato, que isto seria indício claro de velhice e ela, mãe, é a eterna de sempre adolescente. A velhinha um pouco mais nova pode ser acusada de tudo, de tudo, menos de ter abandonado a própria mãe, apesar de todos os limites desse não abandono. Apesar deles. No local onde moram só se respira passado, por todos os poros e veias e artérias; passado sobre passado: mútuos e diversos. O presente possível só entra pelas frestas da janela.

Bem, é preciso ser Poliana: o mundo lá fora está tão inóspito, tão inabitável, que urge alegrar-se aqui e agradecer, apenas agradecer aos Céus, e não pedir outra coisa nenhuma. Afinal, quantos e quantos e quantos não dariam a vida para estar no lugar da velha senhora um pouquinho mais nova... A vida deve saber muito bem o que faz.

Na manhã de 13 de novembro de 2012.