O véu da viúva
 
Escolheu o véu mais bonito da loja, e mais caro também. A sobriedade do negro a enaltecer o dolorido luto. Saiu da loja com ele cobrindo-lhe a cabeça. Levou a caixa vazia. Três dias apenas de viuvez, mas com gosto de eternidade. Pretendia usar o véu de renda francesa sempre que saísse de casa, a vida toda.
 
O último domingo jamais abandonaria sua lembrança. O dia, no meio da tarde, fez-se noite. As luzes da rua acenderam. Mais uma tempestade de verão se aproximava. Veio com ventos muito fortes. Granizo em profusão. Água de cachoeira.
 
De repente, a imagem desapareceu da televisão, as luzes se apagaram. O terrível estrondo do raio caindo bem perto. Os fios de alta tensão não aguentaram a ventania e se romperam. Um foi chicotear no jardim, maltratando as roseiras.
 
Minutos depois, o pior havia passado. A chuva amainara. A claridade voltou para lembrar que ainda era dia. O marido saiu na varanda para ver o estrago. Ela e as crianças na porta. Ele desceu descalço para remover um dos cabos partidos que deitara sobre o carro estacionado na entrada, junto ao portão. Ninguém entendeu porque se incomodara com isso. Não se mexe em fio da rede elétrica. Pode estar energizado. Mas não quis esperar o pessoal da concessionária.
 
Um horror para as crianças ver o pai eletrocutado, segurando a ponta de um cabo de força. Ficou irreconhecível. Caixão lacrado no funeral.
 
Durante meses ela sofreu com os pesadelos do infortúnio. Via-se abraçada ao casal de filhos, de frente para o cenário horripilante do marido carbonizado e acordava gritando. Com o tempo, foi-se acalmando. Remédio de tarja preta para dormir.
 
A vida foi voltando ao que se podia chamar, com algum esforço, de normal. Foram superando e ajudando-se uns aos outros, como dava. Ela, a menininha de sete e o varãozinho de cinco. Além do cunhado solteirão, que continuou morando com eles apesar de uma ou outra insinuação maldosa ouvida na vizinhança.
 
Menos de um ano depois do domingo fatídico, o cunhado lhe propôs casamento. Ela pediu três dias para pensar.
 
Embora irmãos, o cunhado tinha estrutura física bem diferente do marido. Em vez de alto e magro, baixinho e gordinho. Atarracado. Leves traços comuns na fisionomia. Menos as faces coradas, que uns atribuíam às pingas que ele costumeiramente tomava no final do expediente no Bar do Estefano. Outros diziam que era sinal de saúde, dado o incomum café da manhã que ele se proporcionava no açougue, comprado ao alemão que resolveu se aposentar ao bater nos oitenta, alguns anos atrás.
 
De segunda a sábado,  ele chegava ao pequeno açougue pontualmente às quatro e meia da madrugada. Tirava da câmara frigorífica um fígado de boi, cortava duas finas fatias, deitava-lhes sal e pimenta do reino. Enquanto a iguaria curtia nos condimentos, ia preparando os cortes de carne para servir a freguesia durante o dia. Usando facas e serras, destrinchava os quartos de boi, deixados pelo caminhão do frigorífico na tarde da véspera, em peças de coxão mole, posta branca e vermelha, sete, alcatra, costela, filé com osso, mignon, lombo agulha etc.
 
Faltando pouco para as sete, antes de levantar a porta do açougue, ele corria à mercearia vizinha para pegar os dois pãezinhos d’água do cesto que o padeiro acabava de deixar. Abria-os com uma faca e recheava com as fatias de fígado cru curtidas no sal e pimenta. Servia-se de uma generosa caneca de café com leite da garrafa térmica que a cunhada preparava com dedicação de mãe. Prazerosamente entregava-se ao seu desjejum, aguardando as primeiras freguesas do dia. Algumas às vezes se adiantavam e formavam pequenos grupos junto à porta de aço vazada do meio para cima, sem pressa. Esperavam pacientemente e com bom humor o açougueiro terminar o café e erguer a porta. Aproveitavam para colocar a conversa em dia.
 
Durante os três dias de prazo, a viúva matutava sobre as diferenças entre o marido e seu irmão. Queria muito bem ao cunhado. Ele era de bom gênio. Calmo, fala mansa. Não começava nem alimentava brigas, quer dentro ou fora de casa. No entanto, tinha receio de engatar matrimônio. Cunhado é uma coisa, marido é outra. Por outro lado, achava que vida em comum eles já tinham. Só faltava dormirem na mesma cama. Talvez fosse melhor aceitar o cunhado, a quem já conhecia, do que arriscar qualquer outro pretendente ou passar o resto da vida sozinha. Este, aliás, não era bem o termo. Não se sentia sozinha a maior parte do tempo. Mas à noite, na cama, sentia falta de um aconchego, de um ombro e também de um ouvido para contar intimidades que ao cunhado não ousaria dizer.
 
No fim do prazo, no último minuto, deu a resposta. Aceitou o casamento. O amor ela esperava que viesse mais tarde, com o tempo. Por ora, a amizade sincera e o respeito de um pelo outro já eram o bastante.
 
Cerimônias simples no cartório e na igreja. Amigos e parentes mais íntimos como testemunhas e convidados. Jantar numa churrascaria do bairro vizinho.
 
Na volta do restaurante, no quarto, sozinha, ela dobrou cuidadosamente o véu negro e o devolveu à caixa original. Guardou-a no fundo da prateleira mais alta do guarda-roupa e foi preparar-se para receber o ex-cunhado na alcova.
 
Bastava ele mudar de dormitório. Entretanto, decidiu que a mudança propriamente dita faria no dia seguinte. Esta era a noite de núpcias. Por isso, deixaria o terno e iria ao encontro da esposa vestido com o pijama novo comprado de manhã. Nada mais levaria no momento.
 
Ao entrar no quarto da ex-cunhada, estremeceu ao vê-la nua, sob a luz do abajur, estendida na cama à sua espera. Nunca havia reparado na sua formosa. Os cabelos longos, escuros e lisos, tocando os alvos seios. No púbis, uma tímida relva negra destacava-se na pele branca, esforçando-se para encobrir o santuário onde o seu fradinho virgem e teso estava prestes a se acomodar e rezar sem ajoelhar.
 
O homem estava decidido a recuperar o atraso. Nunca tinha feito antes. Gostou. Não deu mais trégua à companheira. Só faltava nas noites em que ela marcava impedimento por cansaço ou coisas da natureza feminina. A ex-cunhada e ex-viúva não tinha do que reclamar. Somente questionava-se acerca da fonte de tanta energia. Será que, assim como o rosado da face, poder-se-ia atribuí-la ao sanduiche diário de fígado cru? Ou à cachaça curtida no pau-amargo, que ele também não dispensava todo fim de tarde no Bar do Estefano?
 
Numa noite garoenta de inverno, um ônibus descia embalado a principal rua do bairro, recém-asfaltada. Lá embaixo, antes de fazer a curva para a esquerda, os freios falharam. O motorista perdeu o controle do veículo, que entrou na contramão e só parou ao encontrar um resistente poste de concreto da rede de alta tensão.
 
O açougueiro retornava para casa dirigindo a picape Studebaker, com carroceria de madeira, depois de um dedo de prosa com os amigos no bar, sorvendo sua cachacinha de pau-amargo. Quando percebeu o ônibus desgovernado, já era tarde. Não teve tempo de fazer nada. Ficou entre o poste e o coletivo, cujo motorista e alguns poucos passageiros sofreram pequenas escoriações. Ele, entretanto, pereceu esmagado entre as ferragens da cabine. Morte instantânea. Os bombeiros levaram bastante tempo para conseguir cortar os ferros e retirar o corpo. Debaixo dele e sobre o que sobrara do assento, o pacotinho amassado de doces de boteco que ele costumeiramente levava para as crianças, sem ter falhado um dia sequer.
 
Minutos depois, a notícia chegou até a mulher, levada por um vizinho. Mais um choque para ela e as crianças, que perderam o segundo pai. Pois além de tio e padrasto, o açougueiro revelara-se um pai amoroso como poucos.
 
No quarto, a viúva, com o auxílio de uma banqueta de penteadeira, alcançou no fundo da prateleira mais alta do guarda-roupa a caixa quadrada. Colocou-a sobre a cama e tirou dela o véu negro de renda francesa. Arranjou-o cuidadosamente sobre a cabeça e foi para o velório na capela do cemitério, sentindo a imensa dor de uma perda. Como se fosse a primeira vez.


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N. do A. - Na ilustração, Madame Darras de Pierre-Auguste Renoir (França, 1841-1919).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 20/11/2012
Reeditado em 30/06/2021
Código do texto: T3995218
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