DIANTE DELE

NA MADRUGADA DE 23 DE NOVEMBRO DE 2012

É verdade que, todos os dias, Ana fica em frente dele alguns minutos mas, o tempo urge para o feijão no fogo, o preparo das misturas, o rearranjo dos desarranjos diários, a lavagem das sujeiras que intrépidas se renovam, a supervisão dos exercícios dos filhos, o preparo de suas mochilas, o embarque dos meninos na perua escolar, o elevador que demora, a ladeira para os passos já cansados desde a planície, o ônibus, as esperas no Banco, o pagamento das contas, as compras no supermercado, as multidões nas calçadas, o suor, os faróis sempre muito vermelhos, as buzinas sempre mais barulhentas, as palavras por dentro gastas como as solas dos sapatos, o silêncio cada vez maior diante da TV, das músicas, dos retratos, dos livros, das ideias, do futuro. O silêncio, à mesa, na sala, na cama.

É verdade que Ana jamais fica diante dele o tempo suficiente, mas nem se dá mais conta. Os minutos galopam, a noite todas as noites chega. As novelas sempre adiam para a noite seguinte a cena decisiva na qual a personagem revela ao marido que há outro homem, a cena em que o marido a expulsará de casa ou a perdoará, desde que ela abandone o outro. Depois do jantar, a louça é lavada e os utensílios guardados cada qual em seu respectivo lugar.

A água corre pelo corpo, o corpo se enxuga, veste o roupão. Planejam-se as sequências do dia seguinte. Os corpos se envolvem nos lençóis, as crianças dormem, o sono chega para todos, com os sonhos dos quais Ana jamais se lembra na manhã seguinte.

É verdade que quando Ana olha para ele, os gestos são sempre meio inconscientes, o olhar não se detém e já se lança para o corredor, a mão abre a mesma porta com a mesma chave de todos os dias, os pés repetem os mesmos passos para o sol lá fora, que também caminha com a regularidade cotidiana, assim como a lua e as estrelas. Nenhum cataclismo à vista.

É verdade que houve um tempo em que Ana olhava para ele e havia muito o que ver. Os olhos vivenciavam a transparência, as mãos se erguiam para acariciarem os cabelos, a curva do queixo, a suavidade dos ombros, a sensualidade ereta dos seios. Os sorrisos brilhavam como um Sol. Nesse tempo a vida era um Novo Continente à espera dos navios de sonho que aportavam todas as noites, no eterno presente de palavras sempre renovadas, recém emergidas do Jardim Primordial.

Ana não se lembra bem da vez primeira em que, olhando para ele, percebeu a pequenina fenda, quase imperceptível fenda, alteração levíssima a modificar algo na forma e na expressão do olhar, culminando neste rosto de hoje. Irreversível.

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