AUSÊNCIAS E SOMBRAS

A música no quarto denunciava um passado que não se deixava partir; na sala, as melodias tristonhas ecoavam como pássaros fúnebres de inverno. A solidão gritava ali. Cortante e estridente.

Da janela do quarto, Alfredo fitava o mar. As ondas no vai-vem. O negrume da noite pesando a atmosfera. No calçadão, uma menina sentada no banco próximo ao poste de luz. Lia um romance qualquer. No banco seguinte, um casal conversa. O vento enrosca os cabelos da garota. Abraçam-se. Ao longe, um rapaz e o cachorro. O garoto segue os passos rápidos do animal. Um vento de verão registra vida e vigor na praia.

Agora, Alfredo olha o quarto. Senta na cama. A música flutua em seus tímpanos. As recordações transcendem a alma e sangram-lhe o peito, como açudes nos invernos violentos.

A vida se esvaiu.

O copeiro há pouco se retirara. A noite se fazia adulta. Toda a casa respira as sombras da ausência.

Da gaveta da cômoda, Alfredo retira o álbum de capa envelhecida. Nas páginas, registros de um passado que não se deixa partir.

A mulher de tranças louras lhe sorria daquelas páginas pardas. A palidez do vestido delatava a corrosão do tempo. Buquê e grinalda. Sorrisos apagados pelo relógio.

O homem de flor na lapela lhe arrancou lágrimas pesarosas. Fitava-o estagnado. O vigor dos 25 anos ainda recendia, sobrepondo-se ao amarelo das fotografias. Um passado que não se deixava partir.

Como todas as noites, vestia-se em seus ternos de gala. A vitrola sonorizava as mesmas melodias. Após o jantar, um passeio pela vida congelada no tempo.

Na fotografia da última página, a mulher de tranças louras oferecia-lhe o buquê. Olhando-lhe com desejo. O afeto contornava as mãos de quem recebia. O vigor dos 25 anos ainda recendia no amarelo das fotografias.

Um dia, a notícia sem volta. O primeiro aniversário. Bodas e sonhos. Felicidades e dor. A ferida há tempos lhe corroia a vida. A mulher de tranças louras lhe sorria daquelas páginas pardas. Fora roubado. Bodas e sonhos.

Partira rápido. Com dores impetuosas. Nem um pequeno lhe deixara. Todas as noites, sentia-lhe a ausência no jantar. A ausência de quando escutavam aquelas melodias . E do quarto, apreciavam o mar. As ondas no vai-vem.

Alfredo fechou o álbum, como quem fecha a vida. Para amanhã tornar a abri-lo e permanecer no passado que não quer partir. Como um ritual que se cumpre ao anoitecer.

O som é desligado e a janela, fechada. O silêncio domina a noite. A angústia não aquieta o coração. A melancolia resiste ao tempo. 30 anos de ausências e sombras.

Alfredo se deita sobre o leito. A mulher de tranças louras sorria-lhe naquele primeiro ano de casamento. Deitados, amavam-se.

Nem um pequeno lhe ficara. Fora roubado no vigor da vida. O coração padece as ausências, inconformado.

Sobre o leito, Alfredo padece, no silêncio que a tudo domina.

Nonato Costa
Enviado por Nonato Costa em 11/12/2012
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