A Dialética da Mentira

- Mas se não fosse uma mentira, Alice, não teríamos saído das cavernas.

Hélio era o que muitos chamavam de mentiroso-compulsivo, mas enganam-se. Hélio não era daquela espécie corriqueira que acaba crendo nas próprias mentiras, ele era um especialista, um mentiroso-científico-persuasivo, um homem que mesmo flagrado no mais estapafúrdio embuste, desenvolvia, argumentava, provava.

E Hélio não ganhara fama apenas em botequins e happy hours, sua vida acadêmica fora fundada na mentira, por exemplo, sua comentadíssima tese de doutorado foi “Propriedade individual: a mentira que deu certo”, e possuía respaldo, Rousseau: a primeira propriedade nasceu quando um homem disse: - “Isto é meu”, e o outro acreditou. Ou seja, o progresso, a ciência, a modernidade, tudo fruto de uma mentira bem sucedida. – “Não mentir é um atentado contra a evolução da espécie”, Hélio dizia sempre. Alice que não concordava.

- Seu cachorro, sem vergonha, sua mãe doente uma ova, sua mãe está em Búzios. Onde você estava ontem? – O primeiro copo era arremessado contra Hélio. Desviou, o bom mentiroso tem reflexos aguçados.

Era Carnaval. Para a maioria das pessoas, uma data de alegria e festa, mas para Hélio e seus discípulos (sim, já os tinha) era muito mais, o Carnaval era o momento ápice para a experimentação de toda a diversidade de mentiras, lorotas, embustes e disparates que a criatividade humana é capaz de elaborar, o Carnaval era a prova decisória onde o mentiroso comum poderia sair da multidão de seus iguais e alcançar o profissionalismo, e, quem sabe, até mesmo, entrar no rol dos célebres mentirosos (grupo, na maioria, representado por políticos).

- Alice, eu posso explicar, inclusive com referências bibliográficas se necessário. Eu estava... - Diálogo interrompido para esquivar-se de mais um copo.

Hélio estava na Bahia, cantando “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, a verdade era esta, e, ainda, acrescida de muito suor e cerveja. Mas isso não vem ao caso, como o próprio dizia: - “Réu confesso é um homem sem capacidade argumentativa”.

- Você é um mentiroso! Vocês homens são todos mentirosos!

- Alice, não sou um qualquer! Não me coloque no meio da massa, a verdade que é relativa e eu não tenho culpa. Sou profissional! Mamãe não estava doente, é fato, mas eu pensei que estivesse porque...

Desta vez foi um prato e uma esquiva digna de Matrix. É que recém-casados tem pouca louça e, além do mais, quanto maior o objeto, maior a possibilidade de ele vir a colidir-se na testa de um mentiroso, é uma lei da física: A integridade corporal do mentiroso é inversamente proporcional ao tamanho do objeto arremessado contra ele por sua esposa.

- Alice, eu explico... é que... é... o Ricardo, isso! Se lembra do Ricardo?

Alice não respondeu verbalmente, mas comprovou a tese do objeto maior, a travessa de porcelana, presente de casamento, foi indefensável, não respeitou nenhum argumento e acertou em cheio a testa do marido. Hélio caiu no chão inconsciente.

- Ai! Meu amor... – Alice corre acudir Hélio.

Inconsciente?... mentira! Fingimento para adiar as explicações, a velha apelação à compaixão feminina: seu macho, ali, caído no chão, machucado, e por sua culpa. Hélio era um profissional.

A mentira é como os vinhos, precisa de um tempo de maturação, o mentiroso afoito sempre dorme na sala. Mentir é uma arte, requer minuciosa atenção em todos os detalhes, ou como ele diz: - “Mentira apressada e ejaculação precoce não satisfazem mulher nenhuma”.

E lembrem-se, se o embuste do inconsciente não for suficiente para inventar a mentira, alegue amnésia.