Paraíso de areia
(-Ann Wilson & Mike Rinno - Almost Paradise)
 
                  -O que é isso? – Disse Waldo olhando a pilha de papel colocada por Samuel sobre a sua mesa.
                  -Isso, meu querido, é encrenca – Samuel era um dos filhos do dono.
         Waldo sabia que Samuel era racista, pelo menos era  o que circulava pelos corredores, os poucos amigos de Waldo diziam que tanto ele quanto o pai não gostavam de negros, a contratação de Waldo e Jessica foi uma espécie de imposição social obrigatória, o escritório era um desfile da gestapo, brancos de dentes brancos, na sua maioria de cabelos claros.
                  -Sei, mas do que se trata? – disse Waldo olhando para os papéis.
                  -Um terreno ao lado do Shopping central, foi invadido por uma comunidade de negros temáticos, aqueles com cabelos arrepiados da década de setenta, meu pai quer você e Jessica no caso – olhou para Waldo com desprezo – deve ser pela competência. – e passou de forma desafiadora as mãos na cabeça de Waldo - estou cuidado da parte intelectual.
         Fez um gesto com as mãos que representava dinheiro que Waldo sabia ser suborno.
                  Waldo não gostava de trabalhar no escritório de advocacia Samuel e Samuel, além de conviver todos os dias com o racismo, corrupção, compra de juízes e de promotores, tinha que conter a sua vontade de esmurrar a cara de Samuel.
                  O desprezo pela ética era conhecido no meio da disputa legal, só a vitória interessava, além disso, sabia que não cresceria na firma.
                  Não tinha escolha, no disputado mercado de trabalho era preciso ter o seu primeiro emprego como advogado.
                  Resolveu aproveitar a oportunidade, na vida nem tudo são flores, principalmente para um menino filho de soldado da PM que queria chegar um dia a ser juiz.
                  O casamento com Kátia era maravilhoso, mas ninguém entendia, além de mais velha, a mulher de Waldo já era promotora de justiça, o que tornou o Advogado um excluído, exilado das cores, nas comunidades negras, a aceitação da mulher era quase nula.
                  O pai de Waldo, Jonas queria que casasse com a sua prima de segundo grau Vanessa uma linda estudante de odontologia que era apaixonada por Waldo.
                  Durante o período escolar o estereótipo não funcionava com Waldo, tinha amigos brancos, não gostava de futebol e ouvia musica clássica.
         O seu primeiro grande caso era uma disputa racial, não se orgulhava disso, mas sabia que não poderia fugir. Com zelo pelo trabalho passou a noite lendo os papéis que Samuel lhe entregou.
 
solon
                  Solon entrou na sala improvisada na tenda, Amanda conversava com Feu, o único branco da comunidade, magro, com traços feminino e muito maquiado, Feu era um dos melhores amigos de Amanda.
          Solon  fez um sinal  chamando para tenda central, queria falar com Amanda.
                  -O que ele faz aqui? – disse.
                  -Estamos acolhendo Feu – disse Amanda – essa é uma comunidade de paz, ele precisa, está desamparado, não jogamos as pessoas no lixo, veio para ser acolhido e será, além do mais é meu amigo, crescemos juntos, eu sei que ele fez um monte de besteira, mas ele mudou Solon.
                  -Não quero aqui nenhum branco– disse Solon – ele não faz parte dessa comunidade, é um gay afetado branco que está com AIDS, essa comunidade é totalmente Black, Amanda, é uma comunidade descendente de escravos, temos que ter uma identidade – Solon sentou em uma almofada – além do mais, não bastasse isso o cara matou cinco pessoas.
                  -Se defendendo – disse Amanda, mas ela achava que esse argumento era fraco, melhor insistir no argumento do perdão, ela sabia que as mortes não tinham desculpa.
                  -Nós entramos em acordo no conselho – disse Solon e completou –  só negros.
                  -Todos  nós somos negros no Brasil, além do mais quem disse que você está no comando, você as vezes extrapola esse personagem que faz de grande líder negro – disse Amanda e saiu da tenda de Solon.
                  Solon pensou quanto amava aquela mulher, mas que Amanda tinha uma personalidade forte isso era inegável, sinceramente, pensou, faria tudo para evitar a permanência de Feu, não só pela identidade da comunidade negra, não odiava todos os brancos, mas não gostava de Feu.
          Feu  achava que era uma vitima, mas teve suas escolhas, não por ser homossexual, nem a parada da droga, o que incomodava Solon era todos aqueles crimes, pensou o líder negro, que antes era professor de história.
                  -Solon – entrou George, um amigo das horas vagas, excelente meia-direita do  seu time, cantor de blues, negros nasceram para cantar, pensou Solon, George era assim – tem um cara de terno e gravata que quer ver você, disse que o nome é Dr. Waldo – deu uma gargalhada depois de falar o nome.
                  -Branco?
                  George balançou a cabeça negativamente.
                  -Eu sabia! – disse Solon – vamos ver a cara da menina que vem entregar seus irmãos aos hienas, aquela empresa dona do terreno do shopping não enviaria um advogado branco, foram covardes até o final.
                  -E quanto ao Feu? – perguntou George.
                  -Esse cretino matou pessoas, branco ou preto crime é crime, quer se arrepender, vai e cumpre a sua pena na cadeia– disse e saiu, George concordou com as palavras do amigo, admirava o amigo.
                  Solon, precisamos conversar – disse George.
                  -Depois, agora vamos ver o advogado do diabo.
O ENCONTRO
 
                  Waldo estava impressionado com a organização, nada sujo, tudo nos seus lugares, uma musica agradável estava tocando o tempo todo, blues, soul, samba, clássico, bom gosto.
          Uma mulher bonita estava em pé perto da porta, quando uma figura negra mitológica surgiu.
                  -Amanda pode deixar a gente. – disse Solon.
                  -Se for pelo bem da comunidade eu fico. Afinal o meu avô que foi dono dessas terras. Quem vai defender na justiça sou eu mesma.
                  -Ok – ele olhou para Waldo – quem é que discute com uma mulher negra que parece uma deusa, não é Dr. Waldo – Solon acentuou a palavra doutor.
                  Logo Waldo gostou de Solon, tinha um encanto especial, falava como se estivesse cantando, sua altura e força física impressionava a Waldo, certamente a mulher no canto próximo a porta realmente parecia uma deusa, a eloquente reverencia que Solon fez teve como resposta um sorriso.
                  -Acho que sabe do que se trata senhor.... – disse Waldo.
                  -Solon – fez uma pausa e olhou Waldo como se estivesse analisando - você é negro! Não percebe que mandaram aqui por que querem a simpatia das pessoas, querem fazer parecer que não é uma ação racista. Sabe senhor, doutor Waldo aqui neste lugar foram mortos centenas de negros, você não se importa de o estarem usando?
                  -Tenho orgulho de ser negro, mas não acha que a comunidade usa do mesmo expediente para lucrar com um terreno caríssimo – disse Waldo que viu um sorriso amarelo no rosto de Solon se tornar uma expressão de fúria.
                  -Acha que usamos nossa cor para ter tratamento especial do governo? –disse Amanda.
                  -Da mesma maneira que a firma me mandou para esta ação, ambos buscamos na cor uma forma de singularidade – disse Waldo.
                  Waldo já estava preparado para aquelas palavras, preferiu não rebater as acusações que ocorreram depois daquele infeliz dialogo o que deixou Solon mais irritado.
                  -O problema aqui é a posse legal da terra, no caso de vocês, ilegal – disse Waldo – esse imóvel é comercial, não  tem nenhum documento que prove que a terra é do seu avô, se não saírem iremos entrar com reintegração de posse.
                  -A terra moralmente pertence aos escravos que morreram aqui e seus descendentes – disse Amanda – como advogada da comunidade nós vamos lutar até o final – apesar de durona as lagrimas escorriam pelos seus olhos, Waldo achou que eram sinceras -  você não tem sentimentos? Luta por um grupo econômico predador.
                  -Sinto muito – disse Waldo – até simpatizo com a causa, mas lei é lei, sem o estado de direito como poderíamos viver?
                  -Caro Doutor há muitas dúvidas sobre esse estado ser de direito – disse Solon – lembre-se de Hobes, um filósofo branco, viciado em exercício e o seu Leviatã, o estado deve engolir algumas pessoas para que outras vivam bem e de maneira confortável  –completou Solon.
                  Amanda olhou nos olhos de Waldo, sua beleza era sufocante, completou o que Solon havia dito.
                  -Sua moral, real ou fingida é uma moral para mídia, o que o povo de fora se importa é com o dinheiro que pode ganhar, não ligam para o semelhante – nesse momento ela olhou para Solon – a cor é uma desculpa para discriminar, saia senhor Waldo, ou melhor, Dr. Waldo, leve a mensagem para os empregadores, não sairemos, lutaremos até o final a luta na justiça.
                  -As regras do jogo nem sempre são justas – disse Waldo. – Como disse antes simpatizo com vocês, por isso vim aqui antes.
                  -Nós sabemos – disse Amanda.
Mãe Cleuza
 
                  -Amanda. – Chamou Bernadete – Mãe Cleusa Adivinhadora quer falar com você.
                  Amanda sentiu um frio na barriga, não gostava de ir a tenda de Mãe Cleuza, a mulher era cega e enxergava coisas que ninguém mais via.
                  Entrou na tenda, a senhora negra era praticante de uma antiga religião vinda de angola, sua função além de parteira  quando ainda tinha saúde era de cura, atendia principalmente as crianças e interpretava sonhos.
                  -Senta meu anjo, chamei você aqui que alguma coisa ruim vai acontecer – disse a senhora, a velhice e as dores nos joelhos, junto com a obesidade,  não permitiam que andasse mais, vivia apoiada em uma cadeira, com seus cento e quatro anos, mais de cento e quarenta quilos era a pessoa mais respeitada da comunidade.
                  -Alguma coisa ruim sempre está acontecendo mãe.
                  -Sonhei com o mar – disse, uma lagrima escorreu dos seus olhos – e sonhar com mar é sonhar com a morte, levante o acampamento hoje e vamos embora dessa terra de carniça e veneno.
                  -Não podemos – disse Amanda, mas o aperto no seu coração era grande, pegou a mão da senhora – não se preocupe, Deus está do nosso lado.
                  - ELE está te mandando um aviso, minha boca fala a sabedoria, vamos embora.
                  George entrou na tenda e chamou Amanda, nunca mais as duas conversariam.
Feu  assassino
 
                  Feu ouviu a conversa de Waldo e Solon, que merda, pensou.
         - Logo agora que eu consegui um lugar para ficar, e um amor verdadeiro.
                  Feu, um homossexual que viveu pelas ruas, tinha muitos crimes, matou o primeiro para se defender, depois matou para roubar, agora matava por prazer, havia segurado os seus instintos por George.
                  Não conheceu mãe nem pai.
          Um espírito feminino no corpo masculino, um desabrigado que vagou sem esperança, até encontrar a Comunidade África, mas não foi pelo abrigo e sim pelo negro atlético e bonito por quem tinha uma paixão que procurou a comunidade. George escondia de todos a sua homosexualidade, mas Feu queria um relacionamento aberto, queria morar e ter uma família.
                  O pequeno e franzino Feu renasceu depois que o amor de George apareceu e era genuíno, ele nunca teve nada genuíno, bonito e fiel.
         Agora aquele advogado veio tirar tudo que o fez renascer das cinzas do abandono.
                  Sentiu ódio.
                  Sentiu vergonha do advogado, agindo contra negros honestos e que ajudam pessoas, Feu não deixaria assim, nunca deixou, não seria agora.
Waldo e Kátia
 
                  Waldo sentiu o cheiro bom de comida caseira, quando abriu a porta de sua casa, estava desanimado, nunca quis tanto fazer outra coisa, desistir de trabalhar com a lei, quem sabe vender cocos na praia.
           A mulher fazia uma linguiça frita e tirou a cerveja do frízer.
                  -O que houve? – ela perguntou - parece abatido – disse Kátia  dando um beijo rápido no marido.
                  -Esse trabalho de merda – disse beijando e apalpando a mulher com desejo, puxando sua calcina para baixo.
                  -Eh, chegou com apetite – disse tirando a mão de Waldo, nos últimos dias vinha fazendo isso, antes eles engatavam e não paravam mais, havia uma coisa errada com a mulher.
          Kátia era bonita, cheia de vida, apesar de ter quarenta anos, não poderia ser a menopausa, pensou Waldo sentando no sofá e abrindo a cerveja, ela estava muito nova para isso.
                  -O que está havendo? – disse tirando a gravata.
                  Kátia começou a chorar, depois sentou no sofá ao lado de Waldo.
                  -Foi alguma coisa que eu fiz? – ele disse abraçando a mulher.
                  Ela balançou a cabeça negativamente, não era com ele.
                  -Peguei o resultado do meu exame, não podemos ter filhos, a culpa é minha, nunca teremos um filho, esqueça, temos que adotar um, ou vou enlouquecer – estava chorando e agarrando as mãos do marido com força que desmentia tudo que falava.
                  Um gosto amargo veio à boca de Waldo, queria falar alguma coisa alegre, queria dizer que poderiam adotar uma criança, queria fazer um monte de coisas, mas a noticia tinha sido devastadora para ele também, Waldo não era burro, sabia que a verdade era outra.
                  -A medicina está avançada – disse Waldo – podemos procurar um especialista fora do país.
                  -Ariscado, acho que estou cansada de andar em círculos, são seis anos tentando – mentiu Kátia.
                  -É o meu exame? Não é? – gritou Waldo.
                  -Se o filho jamais poderá ser nosso, não sou burro Kátia, geneticamente falando, a única possibilidade é esterilidade do pai, o problema é comigo. Merda, eu sempre soube, queria ficar me encanando – disse e saiu batendo a porta.
O DESTINO
 
                  Feu o acompanhava de longe, Waldo estava triste,  porque nunca poderia ter filho com a sua genética, com seu rosto sua face negra, que tinha orgulho.
         Chutou uma pedra e pensou: como o mundo é injusto, passaria amanhã e pediria demissão daquele emprego idiota, havia mais coisas nessa porcaria de vida que ganhar dinheiro de gente racista.
                  Pensou na mulher, Kátia sempre foi uma companheira extraordinária, sabia que a amava muito, também sabia que ela queria muito ter um filho dele, porem teriam que adotar, chorou.
           As coisas saindo assim, o pai teria a sua vitória, não teria mistura de brancos e negros, pelo menos não dentro da sua família.
                  Pensou na comunidade Black, um castelo de areia, por que aquelas pessoas não iam para suas casas viver como qualquer ser humano estúpido de meia idade, construir castelos na areia, era perigoso nesse mundo perverso.
JUSTIÇA INJUSTA
 
         Samuel levou o processo até o Juiz Paulo Barbosa, conversou com ele e disse que o dinheiro estaria em uma conta de “um laranja” em breve, metade foi dada em dinheiro, deixada em um latão de lixo na fazenda do Juiz, a outra metade quando tudo estivesse resolvido.
                  -Sem mortes – disse o juiz – não quero saber de gente morrendo.
                  -Por esse preço? Negativo, a mulher e tal Solon serão mortos, dois policiais já foram contratados, vai ser feito, não quero ariscar, só o preço que pagamos de propina? Quase não está valendo a pena, se não fosse a localização do terreno, já teríamos deixado prá lá.
                  -Não gosto de mortes – disse o Juiz – me deixa deprimido.
                  -A imprensa já esta comprada, sairá apenas uma nota em cada jornal, o resto é igual tirar um dente, rápido e pouco dolorido. – Samuel pegou um bolo de notas de cem e enfiou no bolso de Juiz. – Isso é pela depressão, um pouco para jogar em Las Vegas, eu sei que você gosta.
                  -O senhor é um imoral – disse o Juiz sorrindo.
                  -Moral e ética flutuam com o vento – disse Samuel – somente os tolos acreditam, ou os que não precisam dela para sobreviver, ou como aplicam nos outros, de resto é tão fugaz quanto a moda.  - Samuel ajeitou a gravata do juiz – aliás essa gravata é horrorosa.
                  O juiz ficou pensando como poderia ter gente assim.
ATO FINAL
 
                  Feu encontrou frente a frente com Waldo, apontou a arma e atirou na cabeça do advogado. Não sentiu remorso, estava acostumado, mas alguma coisa naquele momento mudou tudo, um grande remorso apareceu e Feu sentiu uma dor no peito, passou a ter um medo, saiu correndo e jogou a arma no mar como sempre fazia.
          Parou ofegante perto de uma padaria, era noite, estava fechada.
          Quando olhou para esquina uma pessoa vinha andando, devagar, como se medisse os passos, junto com ela outras oito pessoas, quando Feu olhou novamente, Waldo liderava uma procissão de pessoas que ele havia matado.
           Correu tentou refugiarse em uma igreja, começou a orar e pedir perdão. Chorava quando alguém tocou no seu ombro.
              -Que quer de mim? – disse Feu, aquilo nunca havia acontecido.
             -Perdão.
             -Acabei de te matar desgraçado, vai para o inferno.
             -Perdão, pois ficarei ao seu lado até a sua morte.
             Feu gritou por socorro, não adiantava condenado a loucura.
 
O CASTELO DE AREIA DESMORONA
 
         Dois dias depois a comunidade foi invadida, os policiais militares mataram Solon e Amanda, mais cinco integrantes da comunidade.
           Visto da TV, era irritante e todos achavam aquilo um absurdo, porém tudo foi esquecido muito rápido, a noticia seguinte era o excelente jogo feito pela seleção.
 
 
 
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 17/12/2012
Reeditado em 23/04/2013
Código do texto: T4039910
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.