Linda e os choferes de lotação
 
Não fazia jus ao apelido plenamente. Não dava para dizer que era feia, mas estava longe de estampar no rosto uma beleza estonteante. O corpo também não era lá essas coisas. Estatura mediana, seios médios, cabelos curtos castanhos, levemente cacheados, e os permanentes óculos de grossas lentes para corrigir a visão atrapalhada pela miopia congênita. Quadris largos, bunda razoável.
 
Todavia, faiscava os olhos quando se deparava com homem que lhe interessasse. O calor que lhe percorria o corpo inteiro era quase chama a sair pelas ventas. E se conseguisse colocar o olhar diretamente nos olhos da presa, não tinha salvação. Aplicava-lhe o poder hipnotizante das serpentes e a colocava aos seus pés para o que desse e viesse. Mas não era com qualquer um. Não se deixava conduzir por beleza ou elegância. Dependia do momento, da atração que sentisse e que vinha em ondas sabe-se lá de qual oceano. Posição social também não lhe dizia nada. Já se havia deitado com ricos e pobres. Operários e industriais. Puro prazer. Simples luxúria.
 
A partir de um momento da vida, estranhamente passou a se interessar somente por um tipo particular de macho. Ou melhor, por certa ocupação. Sem mesmo saber por que, passaram-lhe a despertar o instinto de fêmea voraz os choferes de lotação. Não sabia explicar a si própria o que lhe chamava a atenção neles. Se era o quepe, a camisa cáqui com gravata preta ou o jeito com que alguns manuseavam a manivela da porta do veículo para entrada e saída dos passageiros. Tara ou fetiche inexplicável e que durou muitos anos.
 
Tudo começou quando, do balcão da mercearia do marido, onde ela dava expediente vespertino, ao reparar na lotação que parara no ponto em frente, avistou o chofer prestes a fechar a porta para seguir viagem. Súbito, ele interrompeu a tarefa ao cruzar seus olhos com os dela. Por alguns segundos, ficou paralisado, sem saber onde estava e o que fazer. Saiu do transe pela reclamação dos passageiros que tinham pressa em continuar. Então, rodou de vez a manivela e perdeu a mulher atrás dos dois vidros superiores da porta, mas levou sua imagem única na retina.
 
No mesmo dia e nos que vieram depois, a cada parada no ponto, fazia questão de alinhar a porta do veículo à da mercearia. Ela sempre estava lá. À espera dele. Olhos verdes faiscantes da víbora. Uma tarde, ela concluiu que chegara a hora do bote final. Assim que a lotação seguiu seu destino, avisou o marido que precisava ir ao centro comprar uns aviamentos.
 
- Por que não compra na lojinha do seu Augusto?
 
- Não tem o que eu preciso. Volto logo.
 
Transpôs o umbral da porta que separava a mercearia da moradia e foi para o banheiro. Tomou um banho baixo, correu para o quarto, escolheu uma calcinha nova. Enfiou-se num vestido estampado, pegou a bolsa. Da porta do quarto, voltou. Tirou a calcinha, devolveu-a à gaveta. Não ia precisar dela.
 
Em vinte minutos, estava no ponto do outro lado da rua à espera da lotação. Em menos de outros cinco, ela chegou. Linda entrou com o dinheiro trocado da passagem na mão. Estremeceu desapontada ao notar que o chofer não era o mesmo. Fez menção de descer, mas não deu tempo. A porta fora fechada e o carro arrancava em direção ao centro. Resignada, dirigiu-se em busca de assento nos fundos.
 
Havia muitos lugares. O seu rosto iluminou-se e os olhos expeliram a faísca habitual para a situação, quando num dos bancos estava quem ela queria. O assento ao lado estava vago. Sentou-se.
 
- Era minha última viagem do dia. Passei o volante para o companheiro.
 
- Melhor do que eu esperava. Apesar do susto que tomei quando entrei.
 
- E então?
 
- Vamos ao Cruzeiro. Descemos na esquina da Marechal com a Sete. Tem dinheiro para o quarto?
 
- Claro.
 
Saltaram da lotação e desceram os três quarteirões pela Avenida Sete de Setembro até o Hotel Cruzeiro. No apartamento de móveis de imbuia envernizados com alto brilho, perderam a hora. Somente ao ouvirem as batidas do recepcionista à porta, como era costume quando os casais não pagavam pernoite e extrapolavam o tempo considerado suficiente para um encontro casual, d
eram-se conta de que não foram ali para dormir.
 
Ao chegar em casa, na boca da noite, o marido estranhou que não trazia nenhuma sacola de compras.
 
- Perdi a viagem. A loja já estava fechada. Não tinha percebido que já era tarde. Aproveitei para ver as vitrines na Quinze.
 
Os encontros com seu primeiro chofer de lotação repetiram-se muitas vezes nas semanas que vieram. Pouco antes de fechar dois meses, ela enjoou. Não o quis mais. Simplesmente deixou de atravessar a rua para esperar a lotação que o traria depois da entrega do serviço. Da janela, desesperado, ele a viu atrás do balcão. Sorrindo, ela acenou um adeus. Ele pensou que havia ocorrido algum contratempo. Esperou pelo dia seguinte. Linda não estava no ponto. Olhou para a mercearia e viu-a ocupada no atendimento de uma freguesa.
 
Sentindo-se ofendido, um dia resolveu tirar satisfações. Ao parar no ponto em direção ao bairro, desceu e entrou na mercearia. Quando se ia dirigir a ela, percebeu o marido atrás do balcão lateral. Meio perdido, olhou para as estantes de azulejos brancos, em forma de escada, e rapidamente pegou uma maçã vermelha. Então foi até ela, pagou e voltou para a sua lotação, ouvindo protestos de alguns passageiros inconformados com a perda de tempo e a folga do ousado motorista.
 
Da mesma tática ela se valeu para conquistar outros choferes de lotação. Usava o mesmo esquema para os encontros. Um ou outro dispensava o Hotel Cruzeiro em troca da própria casa, apartamento de um amigo ou mesmo uma pensão. Começou a pegar má fama no bairro. Comentários de todo lado. Levantavam dúvida sobre se o pacato marido sabia ou não. Ou se ao menos desconfiava. E os filhos entrados na adolescência, saberiam? Não estranhariam os sumiços da mãe em plena tarde, sem explicações convincentes?
 
Certa vez, um vizinho, irritado com o comportamento dela e também penalizado com o infortúnio do marido, seu amigo, ameaçou-a delatar. Não aguentava mais ver a testa do homem enfeitada, dando duro na mercearia do nascer do sol até a noite, todos os dias de semana e domingos até a hora do almoço. Entretanto, ela não se intimidou.
 
- Você decide. Se quiser, conte para ele. Só que eu vou contar para sua mulher, para seu cunhado e para todo mundo que você é o pai da sua sobrinha. Que tal?
 
- Que besteira você está falando?
 
- Ora, conheço bem a sua concunhada. Ademais, a menina é a sua cara. E vai ficar com o seu porte físico se continuar crescendo daquele jeito. Só não repara quem não quer. Ou é muito bobo, como o seu cunhado, que acha que é o pai. Será que acha mesmo?
 
A conversa parou por aí. O Paulão tinha culpa no cartório e lhe faltava dignidade para atirar a primeira pedra. Assunto encerrado.
 
O jeito tranquilo e bonachão do marido indicava-lhe vida longa. Mas não foi assim. O coração o traiu e despachou-o muito cedo. Ficaram os filhos quase criados e a viúva fogosa.
 
A mercearia foi vendida.  A porta entre ela e a casa lacrada. Linda perdeu sua vitrine natural. As lotações há muito haviam sido substituídas por ônibus a diesel com três letras estampadas na cara feia sem nariz: FNM. O tempo dos seus choferes ficou para trás e na lembrança das línguas boas ou más do bairro.
 
Fiquei muitos anos sem vê-la. A vez derradeira foi num domingo de carnaval, e muitos se passaram desde então. Já com claros sinais de mulher idosa, um pouco mais gorda, pernas inchadas. Estava sentada numa cadeira comum, segurando pelas alças uma pequena bolsa deitada no colo. Os olhos, ainda com algum brilho por trás das grossas lentes, lampejavam súplicas para os homens que passavam por ela. Entre eles, o Dalton Trevisan que, se soubesse a personagem que estava perdendo, teria parado para um dedo de prosa. Talvez estivesse com pressa porque o desfile das Bem Boladas da Sociedade Batel estava para começar. Também passei por ela e fui para o salão apreciar as mais belas representantes das boates da cidade, que buscavam um troféu e alguns minutos de fama, além da manchete e foto na primeira página da Tribuna, no dia seguinte.
 
Com certeza, a Linda não me reconheceu. E eu quis evitar possível constrangimento para ela, pois, mesmo sendo carnaval, aquele não era ambiente adequado para mulher desacompanhada. Pelo menos naquela época.


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N. do A. - Na ilustração, O Beijo de Henri de Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 20/12/2012
Reeditado em 26/06/2021
Código do texto: T4045019
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