TEMPORAL

O temporal afirmava-se impulsivo sobre as cabeças dos homens e abaixo dos pés de Deus! Roupas no varal ao vento, denunciavam o que viria. Pareciam enlouquecidas, dançavam frenéticas sem coordenação.

O céu conturbado da pequena Júlio Mesquita, enclausurada no vale quente do rio Feio, regurgitava o calor abrasador do dia como que tomada por forças misteriosas e fora de controle. Uma nuvem escura avançava ameaçadoramente do lado leste, como uma enorme serpente encobrindo todo o espaço celeste. Na sua cabeça, uma coroa de raios explosivos, borbulhando luminosidade intermitente.

Ao fundo, o horizonte, clareado por milhares de flashes de luz, mostrava-se turvo de um branco neblinoso.

Os trovões explodiam como fogos de artifícios e de forma repetida. Explodiam no céu um após o outro, como se fosse, um ataque nuclear sobre a terra.

Os relâmpagos ligeiros, como línguas de fogo inquietas, cintilavam no escuro da noite deixando antever, vez por outra, o rosto febril da tempestade.

O vento participava do espetáculo como um ator importante e dava velocidade e sonoplastia ao temporal. Acrescentava roncos atordoantes que ressoavam pelos bosques e vales de pedra. Ora parecia um animal ferido, ora uma onça acuada emitindo sons esganiçados para assustar seus predadores. Seu uivo era deveras assustador! O vento trazia a chuva no seu colo. Não demorou, ela caiu abruptamente!

A velocidade do vento atribuía às gotas de chuvas um ângulo superior aos 90 graus costumeiros. A chuva caia inclinada, os pingos eram estilhaços de água machucando a pele das pessoas e dos animais.

As vacas se encolhiam e se amontoavam uma as outras na busca da proteção, os cavalos relinchavam assustados procurando apoios na mata e pra lá convergiam com a tropa espalhada pelos prados.

A natureza tantas vezes pacenciosa, mostrava agora, seus dentes e suas garras. Raios e estrondos espoucavam sem cessar. Na trilha dos relâmpagos, os trovões ribombavam de forma encandeada e assustadoramente fortes. No quintal, galhos e folhas voavam das árvores. Na frente da casa, o vento e a chuva brincavam de rolar os latões vazios e tudo que encontram pela frente e pelos gramados, como se fossem pedaços de papel. Alguns latões cortados ao meio, usados para coleta do lixo, rolavam no alto do pasto sem obedecer a uma lógica ou direção.

A chuva agora avançava forte e pela fresta dos clarões se via nitidamente uma cortina de água densa desabando sobre os telhados do casario. Os pés de laranjeira se defendiam como podiam. As copas se envergavam mostrando a musculatura dos galhos de forma infrequente. As folhas se deslocavam de um lado pro outro, como uma cabeleira feminina sob um ventilador vigoroso. Ocorreu-me pensar por um segundo nos pássaros e de como eles enfrentariam os vendavais. Pensei que muitos não conseguem e morrem. As andorinhas cotidianas e experientes acostumadas ao progresso do homem se escondiam sob os vãos dos telhados. As mulheres cobriam a cabeça, mesmo dentro de casa. Os homens contritos rezavam. Todos temendo o furor do vendaval.

O dilúvio persistia. Em cada canto do céu, os lampejos se repetiam e as trovoadas atroavam sem cessar. A chuva parecia amainar ligeiramente, mas era um chiste do vento, ela e as demais forças convulsionadas em estranha sintonia voltavam, com força ainda maior e criavam um cenário ainda mais aterrador e sinistro.

Não demorou e um raio caiu bem perto da casa. Um estouro tremendo! As luzes se apagaram. As bananas de proteção da rede elétrica se abriram, cortando o fornecimento da energia. Agora a fazenda estava no escuro. A casa, todavia, seguia iluminada pelos coriscos que cortavam o céu, vindo de todas as direções. Na escuridão, eles pareciam mais nítidos e mais assustadores.

O vento mudou de direção. A chuva batia agora na vidraça do quarto como um pássaro ferido buscando refúgio na noite. Ela era deveras intensa e volumosa. Mesmo assim, uma dádiva, ainda que tão amedrontante.

Aos poucos ela foi se acalmando e mais mansa apenas molhava o ventre fundo da terra e os pastos já verdes. Longe, os relâmpagos ainda insistiam em navalhar o escuro e os canhões do céu ainda expeliam fogo de suas potentes bocas nos espigões cada vez mais distantes. O temporal começava a caminhar para o fim.

Embevecido pelo espetáculo pirotécnico e pela demonstração das forças naturais, eu mantinha meu rosto colado no vitraux da sala. Pensava no poder de Deus e da natureza. De todas as forças, os relâmpagos e a chuva são os que mais me excitam. Quanto aos relâmpagos sinto-os todos na minha pele, pulsando como uma corrente elétrica passando pelos meus nervos e explodindo na alma. Eles trazem-me o passado e ressuscitam-me a meninice tão distante. A chuva é uma deusa a quem eu doei meu coração desde menino. Ela sempre me acalma e me hipnotiza, porque na verdade, eu creio que sou parte dela e ela parte de mim.

Nem notei que a luz havia voltado em apenas uma fase, pela metade, empalidecendo as lâmpadas e dando uma cor de bronze à minha pele.

A chuva agora bem mais mansa caia continuadamente. Uma deusa branca dançando entre as luzes mortiças. Que bonito o seu show! Ela trazia um ar fresco, o que era um verdadeiro regalo naquelas paragens tão quentes. Ela tamborilava um som gostoso nos tambores, vasilhas e latões arrastadas pela borrasca.

Ainda deslumbrado com o espetáculo, completamente só, deitei-me no sofá para curtir o resto do concerto que o temporal de verão ainda me propiciava, tendo em minha volta, todos os Deuses que povoaram a minha infância!

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 28/12/2012
Reeditado em 27/08/2017
Código do texto: T4057789
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