TARDE DEMAIS

Ela passara a vida a mudar de dono, escrava vendida por tostões de vida.

Primeiro o pai, chicote sempre a mostra e proibições a vista.

Numa infeliz e inútil tentativa de alforria veio o marido.

E o que lhe parecera cor de rosa rapidinho virou cinzas.

Só sobrou a lembrança do bolo e da festa, depois foram noites insones de medo.

Imprevisível este novo dono, ela nunca conseguira adivinhar antes

pra pular fora dos bofetes que cada vez ficavam mais frequentes e duros.

Aprendeu rapidinho a receita da liberdade:

Vidro moído na cervejinha do final de tarde, todos os dias, religiosamente.

Um dia o pobre cuspiu sangue, levaram pro hospital, mas o mal já estava feito

e sacramentado.

Ela se imaginou agora livre para todo o sempre, amém!

Mas esquecera apenas um detalhe, o canalha havia deixado um canalhinha que ele próprio adubara nas longas tardes de ensinamento.

E o que era projeto virou homem, mais parecido com o falecente impossível.

Nunca mais que ela teve pé na estrada. Desistiu.

Só balançava a cabeça em sinal de aceitação pra este último

e derradeiro dono.

Desaprendeu o não, desaprendeu a luta, desaprendeu a luz.

Cansou de lutar contra as correntes e se deixou ali no escuro, parada,

morta em vida.

E se deu conta que aprendera tarde demais a obediência.

(Elza Fraga)

Conto publicado no livro "No Fundo d'um olho Seco"

Elza Fraga
Enviado por Elza Fraga em 03/01/2013
Código do texto: T4065503
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