Ofélia e o vaso de cristal
 
Os calos que trazia nas mãos, conseguidos no cabo da enxada e na tesoura de colheita, com o tempo foram sumindo. O sotaque típico dos dialetos italianos da Serra Gaúcha, entretanto, ficou para sempre.
 
Acostumara-se desde pequena ao trabalho duro na lavoura e na colheita da uva, no verão. De sol a sol. Terreno acidentado. Folga apenas aos domingos. Mesmo assim, madrugava para a missa. Na volta trocava a roupa domingueira, vestia o avental xadrez e na cozinha juntava-se à nonna e à mãe para preparar o almoço que seria servido a dúzia e meia de familiares e parentes. Às vezes um pouco mais porque o pai convidava algum amigo de outro distrito para passar o dia com eles. Vinha a família completa. Mais meia dúzia de pratos à mesa.
 
Uma hora com as mãos calejadas no cabo da pá de madeira mexendo a polenta na panelona de ferro, centralizada numa das bocas do fogão a lenha. Quando a casquinha estava formada no fundo, com a ajuda do irmão mais velho deitava a massa branca e mole na tábua no centro da mesa. Enquanto a polenta esfriava e ganhava consistência para o corte, apressava-se em lavar a cestada de radiche, bem lavadinha, folha por folha, acomodando cada uma no escorredor. Livres do excesso de água, ela juntava os punhados em três ou quatro travessas, deitava-lhes umas rodelas de cebola roxa, sal, vinagre de vinho tinto e um pouco de azeite. Depois disso a mãe já podia usar o escorredor para jogar o macarrão de massa preparada na véspera. Escorria um pouco de cada vez, pois a quantidade era grande. A nonna testava a polenta com o dedo indicador. Estando no ponto, passava uma linha de costura rente à tábua e com absoluta destreza e segurança ia puxando-a para cima, cortando fatias que ficavam milimetricamente iguais.
 
Em talian a mãe ralhava com o irmão que estava atrasado para ralar o queijo parmesão. A nonna intimava os homens para a mesa, berrando da porta no mesmo dialeto. Eles interrompiam a partida de bocha no quintal, porque a fome já era maior do que a vontade de jogar. Quem estava com a cuia, sugava a bomba até o ronco final e apressava-se para tomar lugar à mesa. Primeiro o nonno, na ponta de sempre. O velho deliciava-se com esse momento e agradecia poder reunir a família e amigos em torno de uma mesa farta. Polenta, macarrão de massa caseira, galinha ensopada, frango a passarinho, radiche, cebola miúda em conserva. No verão o pepino curtido no sal grosso e em folhas de parreira. Vinho tinto seco para os homens e suave para as mulheres. Bastava sorver o último gole do cálice de graspa e dar a ordem para se servirem. Se o padre estivesse entre os convidados, concedia a ele a honra.
 
Ofélia já estava perto dos vinte. Apesar de adorar a família e a algazarra dos almoços de domingo, achava que a vida na chácara não era para ela. Almejava viver em cidade grande. Ruas asfaltadas, lojas bonitas, shopping centers. Marido bancário ou do comércio. Melhor se fosse funcionário público, ou pelo menos de empresa do governo. Sem as mãos grosseiras da lida na roça. Talvez até se animasse a estudar. Completar o ensino fundamental pelo menos. Caso tomasse gosto e encontrasse condições, poderia seguir adiante.
 
Todos os anos eles recebiam a visita de um parente que se mudara com a mulher para Curitiba. Ofélia empolgava-se só de ouvir o que contavam. Ele aprendera o ofício de lanterneiro. Agora já era oficial e trabalhava numa boa empresa. Folgava sábados e domingos. Tinha trinta dias de férias por ano. Um tal de FGTS. Ela, apenas dona de casa. Já moravam em casa própria. De madeira, mas era deles e em bairro bom. Tinham um casal de filhos pequenos.
 
Numa dessas visitas convidaram Ofélia para ir com eles, passar uns dias. Aceitou na hora. Difícil convencer pai e mãe, e a desconfiança do nonno e da nonna. Além do ciúme dos irmãos. Por fim e debaixo de mil recomendações, conseguiu embarcar num ônibus noturno com o casal e as crianças.
 
Deslumbrou-se com a cidade. Para a roça não voltaria mais. Chácara, só a passeio. Pai e mãe que perdoassem, mas só pensava em ficar. Iria arranjar emprego.
 
Dias depois conheceu uma família que precisava de empregada doméstica. Para começar estava bom. Teria pouso, comida e um dinheirinho como nunca vira. Casa bonita, grande. Patrão industrial. Patroa finíssima. Alta sociedade. Conseguiu o emprego porque sabia cozinhar muito bem. O traquejo com os eletrodomésticos e faxina iria aprendendo com o tempo. Patroa compreensiva. Gostou dela.
 
No primeiro dia foi apresentada aos moradores e cômodos da casa. Um ambiente para cada coisa. Recebia instruções. Como devia arrumar as camas, usar aspirador, espanar os móveis, lavar os vidros. Trabalho de montão, mas que não lhe metia medo. Duro mesmo era ganhar calos no cabo da enxada e na colheita da uva, pensou.
 
Numa das salas a patroa deteve-se diante de um vaso transparente, como se estivesse diante da imagem de um santo. Todo trabalhado em relevos, mais de dois palmos de altura. Base larga, boca um pouco maior. Uma peça belíssima até para quem não era entendido no assunto.
 
- Ofélia, quando fizer limpeza nesta sala tome muito cuidado com este vaso. É uma peça raríssima, talvez única no mundo. Cristal da Bohemia e está com minha família há mais de cento e cinquenta anos.
 
A moça sentiu a responsabilidade unicamente pela entonação da patroa e não pelo conhecimento. Jamais ouvira falar dessa Bohemia e nem sabia que um vaso de vidro pudesse durar tanto tempo. De qualquer forma era muito bonito e, se dependesse dela, iria durar mais um século e meio. Nem lhe encostaria as mãos.
 
Ao longo de algumas semanas já estava adaptada à nova vida. Em que pese a saudade da família e principalmente dos almoços de domingo, achava que fizera bom negócio. Tinha duas tardes de folga. Uma no meio da semana, variando o dia conforme a necessidade do serviço, e outra sempre aos domingos. Depois de lavar a louça saía para dar umas voltas, matiné, Passeio Público. Chegou a pensar em namorar um soldadinho. Ouvia muitas vezes o nonno falar com uma pontinha de orgulho de um Mussolini, o Primeiro Marechal do Império. Devia ser coisa importante, de militar de primeira grandeza. Daqueles cheios de estrelas. Mas não sabia se aqueles soldadinhos das tardes de domingo no Passeio Público um dia poderiam alcançar a patente de marechal, nem mesmo se viriam a ostentar qualquer estrela na farda. Decidiu não arriscar.
 
Um ano depois, lidar com os eletrodomésticos de cozinha e de limpeza também não era mais segredo para Ofélia. Manejava todos com maestria. Muito mais fácil passar enceradeira elétrica no assoalho de tábuas corridas do que o pesado escovão da mãe. Todavia, o excesso de confiança adquirido pregou-lhe uma peça.
 
Estava dando brilho das tábuas da sala do vaso de cristal. Como não tinha ninguém na casa, naquela tarde, sentia-se leve e solta pilotando a enceradeira e balançando o quadril enquanto cantarolava uma musiquinha que vira o Jerry Adriani cantar na televisão e andava tocando bastante no rádio. Qualquer coisa como um rockezinho leve, água com açúcar. Foi quando se distraiu e numa rodopiada bateu com o cotovelo no vaso de cristal sobre o balcão, ao lado de uma dezena de porta-retratos.
 
O vaso deitou sobre um dos retratos, resvalou e foi junto com ele para a extremidade do móvel. Ofélia largou a enceradeira para alcançá-los com as mãos. Conseguiu apanhar o porta-retratos. O vaso bateu no seu antebraço e mudou o curso. Ela ainda tentou deter a queda encostando o quadril no balcão. Não teve sucesso. Arcada com o porta-retratos nas mãos e a bunda para cima, encostada no balcão, viu o danado desviar-se novamente e espatifar-se no chão duro.
 
Perdeu a fala e o rebolado. Olhou os cacos, pensando em juntá-los com cola. Mas eram muitos e não haveria cola que os segurasse. Então os catou, embrulhou-os em várias folhas de jornal e colocou no lixo. No balcão restou o espaço vazio entre as fotografias da família. Uma delas, meio desbotada, provavelmente era do tataravô da patroa, o primeiro dono do vaso. Pela cara que ele fazia, não restava dúvida. Só faltou saltar do porta-retratos sobre ela, ou lhe descer a bengala no lombo.
 
Seguiram-se dias e noites de ansiedade e angústia. Quando ia dormir rezava agradecendo por ninguém ter notado a falta do vaso. Ao acordar orava pedindo clemência para que não dessem pela ausência dele naquele dia. Ainda não encontrara um jeito de contar o incidente para a patroa. Nem tivera coragem de pedir a conta e sumir.
 
Numa tarde da folga do meio de semana, Ofélia entrou numa loja de um e noventa e nove no centro da cidade para comprar mimos pessoais. Coisas para prender o cabelo, maquiagem barata, creme para as mãos. Qual não foi sua alegria quando baixou os olhos azuis sobre um vaso numa das prateleiras. Se não era igualzinho ao vaso da patroa, era muito parecido. Aflita, perguntou a um dos atendentes se era de cristal. O rapaz respondeu que não trabalhavam com cristais, mas que era de acrílico, um material muito bom e inquebrável. Perguntou o preço. Baratíssimo. E a patroa fazendo pose com um vaso velho que quebrava à toa.
 
Foi para a casa entre contente e preocupada. Como chegar com a sacola dando na vista? Certamente alguém iria perguntar o que havia comprado. Foi diretamente para seu quarto, nos fundos. Escondeu a sacola no guarda-roupa e largou-se para inspecionar a casa. Não encontrando ninguém, respirou aliviada e voltou ao quarto para buscar o vaso. Acomodou-o no lugar do outro. Olhou de longe e duvidou que notassem a diferença.
 
Muito tempo depois, uma amiga da patroa apareceu com um antiquário que estava louco para conhecer o vaso raríssimo. Era um homem muito bem vestido, de modos muito finos, meio amaricado, cavanhaque bem cortado. A patroa o conduziu à sala do vaso. À distância contava orgulhosa a epopeia do tataravô, que deixou a região da Bohemia para se juntar a um grupo de prussianos no porto de Hamburgo e vir definitivamente para o Brasil, na metade do século XIX, carregando na bagagem o vaso de cristal lapidado a mão, como símbolo e lembrança da sua terra.
 
- De qual vaso a senhora está falando? - perguntou o experiente antiquário.
 
- Ora, daquele entre os retratos, o senhor não está enxergando?
 
- Com licença - pediu o homem dirigindo-se ao balcão.
 
Curvando-se um pouco para deixar os olhos na altura o vaso e examiná-lo melhor, concluiu:
 
- Desculpe-me, senhora, mas este vaso não é de cristal da Bohemia. Nem é de cristal.
 
- Devo lhe dizer que o vaso não está à venda. Trata-se de patrimônio familiar. Portanto, não queira o senhor depreciá-lo. Vai dizer então que é de vidro?
 
Tomando o objeto nas mãos, sentiu o peso e respondeu.
 
- Não é de vidro.
 
- Então é cristal. Eu não disse?
 
- Também não. É nada mais nada menos do que uma peça de acrílico. Muito bem industrializada, diga-se de passagem. E surpreendente, considerando-se o país de origem.
 
- O senhor deve estar louco ou brincando. Ou quer debochar de mim?
 
- De maneira alguma, senhora. Veja - ele disse tendo virado o vaso com a base para os seus olhos e em seguida para os dela, apontando a minúscula etiqueta dourada colada no fundo.
 
À medida que a mulher assimilava as três palavrinhas impressas na etiqueta, tudo escurecia e rodava à sua volta. Viu a silhueta do homem com o vaso nas mãos ir-se desvanecendo, enquanto experimentava a sensação de estar escorregando lentamente para um abismo sem fim.
 
Antes de bater a cabeça na madeira do chão e desmaiar de vez, ainda permanecia nítida na sua retina a inscrição do pequeno selo: Made in China.


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N. do A. - Na ilustração, Colheita de Uvas de Neiva Passuello, artista gaúcha de Erechim radicada em Curitiba - PR (neiva.passuello.com.br).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 11/01/2013
Reeditado em 17/05/2021
Código do texto: T4078918
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