OTELO DE SANTA ANNA
 
 
         -Como é que pode Arcádia, como ela morreu? - disse o prefeito Otelo, ele estava nervoso, suas mãos tremiam, elas diziam mais que suas palavras elaboradas.
         -Aquele médico bêbado que você contratou – disse João Arcádia, braço direito de Otelo e a única pessoa no mundo capaz de falar com Otelo daquele jeito.
         -Porra, chegou ao hospital com uma febrezinha e uma dor de garganta – disse Otelo – e morreu de quê?
         -Dengue – disse João Arcádia – disse para você que o dinheiro da Saúde é sagrado, você sempre contratando médico bosta, sem qualidade nenhuma. Sem combater a dengue e ainda por cima, a Zildinha secretária de saúde? Todo mundo sabe que você come a Zildinha, até o marido dela.
         -Não pago você para vir com moralismo agora, cadê a minha mulher? Para com o papo da Zildinha que você sabe que sou fiel – Arcádia sabia que Otelo amava a esposa, a carne que era fraca.
         -Você quer dizer a secretária de assistência social, que o povo adora e é por causa dela que você foi prefeito durante todos esses anos, que por acaso é a sua esposa, ela viajou para BH – mesmo em uma situação de sufoco Otelo sorria quando pensava na esposa.
         -O que a merda da minha mulher está fazendo em BH?
         Otelo sentou na cadeira que tanto amava aquela cadeira que representava o poder, seu trono de rei, terceiro mandato, queria ser reeleito, tinha a sua formula perfeita.
 Nunca havia falhado, mas parece que alguma coisa vinha se acumulando nos últimos anos, doenças, contratos e até a polícia estava xeretando mais do que o comum.
         -Merda, tem um amigo meu médico, que disse que a dengue nem existe, que é coisa para arrecadar fundo para o governo, combate da dengue é a coisa mais lucrativa que tenho nessa prefeitura, agora essa criança? Como é o nome dela? Tenho que escrever no papel. Não quero ninguém espalhando por ai que ela morreu de dengue.
         -O problema é que ela morreu num município vizinho de Santana – disse Arcádia.
         -Não vai dizer que foi Guaporé? O prefeito de lá é meu adversário político.
         -Foi lá mesmo.
         João Arcádia olhou para o relógio.
         -Que tanto você olha para esse relógio? - disse Otelo.
         -Temos uma audiência pública.
         -Audiência pública, pra quê?
         -Orçamento do estádio de futebol – Arcádia tinha que ser prático nesse momento que Otelo estava em turbulento mar de emoções – tem muita gente lá que nem está ligando para a morte da criança.
         -Lá tenho cabeça para orçamento de estádio de futebol Arcádia? Puta que pariu! As vezes acho que você é a pessoa mais fria que conheço – e era mesmo, pensou Arcádia. - Morreu uma criança de dois anos dentro do meu município, faltando três meses para eleição, meus inimigos vão fazer disso a arma principal, vão fazer uma mosquinha qualquer com o nome da criança, preciso pensar em alguma coisa rápido como antídoto – disse pegando o uísque que estava na bandeja. Nos últimos tempos Otelo havia bebido demais. – Poderia ver a família, conversar com eles, quem sabe? Mesmo depois de uma morte, pessoas sempre precisam de coisas.
         -Não querem ver você nem pintado de ouro.
         -Liga para minha mulher – disse tomando o uísque todo de uma vez – sem ela não sei fazer nada, ela que entende esse povo.
         -Ela está com Souza.
         -Souza, que diabo, ela deve ter levado para uma consulta de cabeça, depois que a mulher dele morreu ficou meio maluco, passou até a acreditar em Deus?
        Arcádia achava que ele era uma péssima influencia para a mulher de Otelo, andava falando para ela mesma ser candidata, se Otelo soubesse isso poderia acabar em tragédia, duas vezes os dois conversaram, Souza disse para Arcádia que Otelo era seu amigo, mas era corrupto, e a cidade precisava de alguém como Jacira.
Arcádia escondeu de Otelo a conversa, nem sabe porque, pois não gostava de Souza.
         -Você ainda tem essa desconfiança do Souza, acha que ele pode se virar contra mim?  - disse Otelo.
         -É o que as pessoas falam. – disse José Arcádia – me perdoe a palavra.
         -Não acredito – disse Otelo.
         Otelo pegou a arma na gaveta, antes tinha sido policial civil e chegou ao cargo por ser conhecido como truculento e valentão, mas o crime tinha desaparecido da cidade.
         Um dia a Cida havia amado verdadeiramente Otelo.
         -Vamos atrás daquele médico de merda.
         -Ele saiu da cidade.
         -Vamos até a puta que pariu – disse Otelo – quero que pelo menos peça desculpas para a família da criança, no final tudo é culpa dos médicos.
         Otelo tinha um porte atlético, olhos negros e pele morena, poderia passar por um jogador famoso de basquete quando jovem, hoje a barba grisalha e a cabeça raspada, dava-lhe o charme de um cantor de blues, suas passadas rápidas impressionavam, não vacilava, assim como nas palavras, a única coisa que tinha realmente medo era o anonimato não ser conhecido, foi eleito a primeira vez prometendo saúde, educação e segurança, mas a figura extraordinária de Jacira do seu lado contribuiu para eleição, ela tinha carisma, simpatia, quase tudo que falava era amado pelo povo.
         Apaixonado pela bela esposa tinha no amigo Eduardo Souza, seu verdadeiro irmão de fé, apesar de branco e estudioso, metido a democrata, Eduardo salvou várias vezes Otelo quando este ainda estava na polícia, mesmo com as fofocas de todos, sabia que Eduardo era seu fiel amigo, que não trairia o amigo passando para o lado da oposição.
         Jacira, esposa de Otelo, foi miss Minas Gerais, negra elegante, com lábios cor de rubi, tinha um desses predadores olhos claros, verdes, que nenhuma mulher deveria ter para não chocar os homens, suas mão eram finas e de dedos longos, sofria de uma tristeza que nenhum médico conseguia curar, apenas as suas conversas sobre filosofia com Eduardo curava aqueles dias infames, amava Otelo e ele sabia disso, mas o seu melhor amigo, também era o melhor amigo do marido.
         Eduardo, que Otelo tomava como democrata, era mais que isso, amante da natureza humana tinha fé nela, em Deus e de alguma forma a bondade prevalece.
Uma vez confessou a Jacira que amou demais uma mulher e por isso ficou sozinho, romântico, acreditava que amor era para vida toda, a sua mulher morreu em um acidente de avião a sete anos, antes ainda do primeiro mandato do amigo.
Pensador, mesmo sendo policial, dedicava-se a leituras de psicologia e filosofia, amante de Hegel, Hume e Kant, poderia ter vivido na antiguidade, assim seria confundido com Apolo, grande, de olhos claros, cabelos negros, Eduardo sempre foi bonito, porém isso o aborrecia.
         Sentados perto da grade que separava os visitantes das zebras, caminhando no zoológico, Eduardo resolveu falar a Jacira.
         -Tens amor por mim?
         -Sim, é meu amigo.
         -Quero que se candidate – disse Eduardo.
         -Por quê?
         -A vida não faz mais sentido, sem lei, o povo te adora. Amei uma única pessoa, ela se foi, não vejo mais cor nessa vida – disse Eduardo – enquanto Otelo busca o poder, busco uma paz que não terei, mas você pode fazer alguma coisa real.
         -Já me senti assim, mas não posso trair Otelo.
         -Por quê? Se tens à Otelo, não pode traí-lo, ele terá que entender, alguma força superior tem que parar Otelo, uma criança morreu hoje, vai ficar parada e ver outra morrer amanhã? - perguntou Eduardo.
         -É cruel, farei o que pede, tudo para mim está acabado, meu casamento, o respeito do meu marido, vou salvar crianças como me pede e perder a minha vida porque essa é minha missão? Não acha isso parte de um roteiro fajuto? Não meu amigo.
         -Não me sinto vazio, estou cheio demais, cheio dessa violência, cheio de amor para dar a pessoas que não o querem, cheio de beleza, cheio do dinheiro que nem mereço cheio de piedade por vândalos e drogados, cheio dessa vida, você é minha única esperança.
         -Não posso.
         -Pode, sabe que pode. – Souza sabia que havia plantado a semente, agora tinha pouco tempo para consolidar o fruto.
         Otelo achou o médico perto de um bar, estava cheio de cachaça, fedia, o imbecil tinha cerca de cento e vinte quilos, usava uma muleta e estava falando bravatas para dois outros homens bêbados, de barba e calça puída, além do dono do bar, acostumado com bêbados, ficava parado ouvido, sem ouvir.
         -Que merda é essa, porra Rodrigo, sentado num bar depois da criança morrer? Ta querendo me foder? Só pode – disse Otelo e jogou a pinga fora.
         -Porra Otelo essa era da boa, agora só tem álcool setenta para vender.
         -Já bebeu demais – disse Otelo.
         -Vem uma puta aqui que eu contratei.
         -Vamos vai pedir desculpa ao pai da menina.
         -Não vou, não errei. Você que errou, esse hospital nem têm exame de sangue, a criança tinha uma garganta inflamada e pronto – disse o patético médico, cuja especialidade falida era ginecologia e obstetrícia, conhecida pelos mais populares como médico de mulher.
         -Você não entende, ou por que é burro, ou por que está bêbado, que isso pode arruinar a minha candidatura e eu posso perder a eleição e você o único lugar que pode te dá um emprego, seu gordo de merda?
         -Não, se pedir desculpa, vou assinar um atestado de culpa – disse pegando um cigarro.
         -Você voltou a fumar? - disse Otelo.
         -Estou enfrentando um problemão, o cigarro é meu único refugio.
         -Me dá um mata -rato desses – disse o prefeito e tragou – vamos lá pede desculpa diz que errou e pronto, todo mundo sabe que você está na bosta mesmo, a maioria vai ter pena e deixa o assunto de lado. Que você é um médico de merda, quem não sabe nessa cidade? Eu culpo você e ganho a eleição, depois recontrato com um salário maior.
         -Que vantagem eu tenho nisso?
         -Quando a poeira abaixar, digo que foi culpa do destino, faço uma solenidade para te trazer de volta, além de arranjar uns cem mil.
         Jacira havia se inscrito secretamente no começo do ano em um partido de BH, sua candidatura era certa, quando Otelo soube, sua dor foi tanta que abriu a porta de casa com a arma em punho.
         Souza estava parado em pé, tinha um copo de cerveja na mão, Jacira estava sentada no sofá e sorria, a raiva tomou conta de Otelo.
         -Meu amor, meu melhor amigo!
         -Calma Otelo, deixa essa arma e nós explicamos.
         -Explicar uma porra de uma traição?
         Jacira calmamente se levantou, colocou a mão na face do marido.
         -É temporário, quando você vai entender que só quero o melhor para esse povo.
         -Povo? Merda de povo – disse Otelo – um bando de aves de rapina, gente que não vale nada, vem aqui pedir coisas para si, só a imprensa está interessada em saúde e educação, o povo pensa em muro e emprego, você não sabe em que está se metendo.
         -Posso tentar – disse Jacira.
         Otelo apontou a arma para mulher, quando ia puxar o gatilho, uma bala passou pela base do seu crânio e saiu pelo olho direito e Otelo caiu sem vida, atrás dele Arcádia segurava uma pistola nove milímetros.
         -Sabia que ia dá merda.
         Jacira chorou a morte de Otelo, disputou a eleição, mas perdeu, o que mostra que quem está do lado de fora do mundo maquiavélico conhece pouco a política, Otelo pagava propina, comprava votos, se associava a bandidos, empreiteiros e ladrões, Jacira nunca faria assim, seu sonho era ser eleita pelo povo, pois era honesta e queria mudanças.
        Seu carisma não era tão grande assim, nenhum carisma é tão grande – pensou Arcádia quando estava se despediu de Jacira quando ela foi visitá-lo na cadeia e prometeu depor a seu favor .
       O adversário ganhou. Um velho dinossauro político, tudo piorou muito na cidade.
Jacira foi embora para casa da mãe na Bahia.
Souza virou radialista, agredia todos os dias os políticos locais, até que um dia apareceu morto comum tiro na cabeça, todos diziam que o depressivo ex-policial havia se matado.
         Arcádia foi preso.
 
FIM!
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 19/01/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4093122
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