A mulher do barbeiro

Prólogo

Rapaz trabalhador, é bem verdade. Perseverante, raramente faltava ao ofício na barbearia, herança do pai que, embora aposentado, ainda ali trabalhava. O estilo de ambos, ah! Absolutamente diverso. O pai tinha clientela da terceira idade e adstringia-se a barbear e cortes de cabelo tradicionais. O filho, ao qual haviam sido ministrados cursos de cabeleireiros especializados, estava habilitado a quaisquer tipos de variações no exercício da profissão, sabendo tratar desde o fio carapinha até a mais delicada lanugem, fosse que fosse viril, ou a mais frágil madeixa de mulher. Apesar disso, o estabelecimento era destinado apenas a homens.

Do estilo já se disse, diametralmente opostos. Entretanto, na administração do negócio, ambos eram uno. Distendiam o trabalho noite adentro, sem lamúrias, não pela dedicação ao serviço, mas sempre tendo em conta que mais trabalho significa mais dinheiro. Tirar dinheiro de um deles? Pois sim! Mais fácil o sol parar de brilhar.

Rômulo, o filho, a despeito do bom andamento do negócio, o que já lhe propiciara uma situação financeira confortável, não gostava muito de ser identificado como barbeiro, ou cabeleireiro. Tinha para si que por mais dinheiro que auferisse, a profissão do pai não lhe daria a necessária expressão social que se reconhecia merecedor. Não por outro motivo que ingressou no ensino superior, tendo cursado Direito.

A cupidez não lhe foi suficiente para ter o espírito despertado para as letras, o que o conduziu a claudicar muito para poder ser graduado bacharel. Percebera que sua aptidão para o comércio não lhe valia muito na faculdade, o que lhe causava alguma angústia. Esses pensamentos tiveram um novo norte quando, em fins do penúltimo ano de sua jornada estudantil conheceu Leila. Caloura do mesmo curso, era uma beleza mediana, sem atrativos especiais. Pequena, igual a ele, de corpo bem formado, enfeitada por cabelos castanhos claros, razoavelmente sedosos. A moça não era rica, mas tinha uma ótima situação financeira. Embora nascida e criada no Estado de São Paulo, seus pais fizeram o patrimônio com terras no Mato Grosso do Sul, onde eram estabelecidos. Namoraram até o fim do curso de Rômulo, quando então se casaram. Tiveram uma bonita menina de cabelos cacheados. Mara é seu nome.

I

Depois do enlace, a família de Leila não mais assumiu as despesas da jovem senhora, ao contrário do que supunha seu consorte. Se já era difícil arrancar um tostão dele, a situação ficou ainda pior. Ainda mais agora, que tinha uma justificativa plausível - era pai de família. Quando algum cliente comentava sobre custo de vida, contas de casa, logo vinha ele choramingando suas despesas, num tom de vítima. Apesar desse gênero avaro, resmungando ou não, nunca se viu credor em sua porta.

Rômulo chegava em casa já tarde e cansado, não dispondo de muito tempo para os livros, fato com o qual estava resignado. O que o incomodava mesmo era o 'status' que queria ter com a realização de seus estudos. Doutor Rômulo, isso sim. Esses pensamentos martelavam sua cachola do amanhecer ao pôr do sol e, por vezes, não o deixavam dormir. Estando prestes a terminar o curso da mulher, tomou uma decisão: iria investir nos estudos dela, independentemente dos custos que calculara e verificou serem altos. Atingiria seu desiderato, mesmo de forma oblíqua.

Não foi difícil convencer Leila a continuar estudando. Livros foram comprados e a matrícula dela foi efetivada num desses 'cursinhos' para aprovação em concursos públicos. Alugou-se um apartamento em São Paulo que, próximo do educandário, evitava dispêndios com transporte. Rômulo providenciou tudo. A tenra Mara transformou-se em encargo da avó materna.

Um ano foi o tempo que demorou o cursinho. Depois desse, Leila ainda fez mais uns oito meses de cursos de atualização e reforços. Rômulo, durante esse tempo, só via a mulher nos fins de semana. Não todos, em função dos custos, mas sempre que conseguia cortesias para viajar de um seu cliente de uma empresa de transportes. As despesas com os cursinhos, enfim, haviam terminado e Leila retornou para casa.

Em meio a uma ambientação difícil com a filha, vez que para Mara sua verdadeira mãe era a avó paterna, outros tipos de despesas surgiram. Leila precisava continuar se atualizando com livros novos, doutrinas, apostilas, e o período no qual os lia comprometia a dedicação ao lar, de modo que uma empregada doméstica foi contratada. As despesas com os concursos também não eram poucas: viagens, inscrições, hospedagens. Rômulo ficava, a cada dia, mais impaciente, ao mesmo tempo em que Mara ficava mais e mais em segundo plano.

Nos primeiros certames, Leila não obteve êxito e, embora fosse mais afeta às letras que o marido, não era uma sumidade dos textos jurídicos. O casal, então, resolveu ampliar o rol dos concursos, a fim de aumentar as possibilidades de aprovação. O afinco foi produtivo, levando Leila à aprovação na primeira fase de um concurso no norte do país. O acontecimento, ao invés de surtir satisfação em Rômulo, transmutou a ansiedade inicial dele em angústia, a cada fase que se aproximava. Ele temia que Leila fosse reprovada e que teria de começar tudo de novo. Entanto, não foi isso que aconteceu. Sua mulher transformou-se em Juíza, e Rômulo foi tomado por um êxtase profundo.

II

Rômulo pretendia abandonar seu ofício de cabeleireiro. Para não decepcionar o pai, que investira nele, dizia que montar salão em lugar desconhecido e de pouca população era muito difícil. Explicava que a Drª Leila - era assim que a passara a chamar e fazia questão que os outros também o fizessem - iria começar em comarcas pequenas e ele não poderia investir nessas cidades porque, para acompanhá-la quando promovida, o investimento se tornaria vão, o que no fundo era verdade. Sua idéia era investir em gado, aproveitando os conhecimentos do sogro e a natureza do Estado para onde iriam.

Os pensamentos de Rômulo eram bem razoáveis. Infelizmente, fizera seus cálculos sem saber das condições dos familiares de sua mulher. Seu Carlos, o sogro, chafurdava em dívidas. Nos últimos anos, os financiamentos à terra não andavam muito fáceis e uma prolongada seca contribuiu para o insucesso das colheitas. Rômulo teve de abandonar seus planos e continuar trabalhando com o pai.

Mara, que a essa época já se tornara uma adolescente, não se ambientou ao lado da mãe. Além de não se ajustar ao novo lugar, que a cada dia odiava mais, sempre que tinha oportunidade, crucificava a genitora. Dizia que havia sido abandonada para que a mãe tivesse sucesso profissional e outras incompreensões e chantagens dessa ordem. A adolescente tornava-se problemática e a situação só tinha algum alento quando vinha para o lado da avó. No fundo, queria exprimir um sentimento humano, alusivo a pais e filhos. Um filho não quer saber se o pai está ocupado em conseguir meios para sustentá-lo, que a vida moderna é muito difícil. Ele quer saber que quando chorar, seu pai está ali; quando tiver reunião na escola, sua mãe vai estar lá; na hora de dormir, seus pais lhe venham contar estórias. Tendo esse afeto indispensável, condição para o desenvolvimento das pessoas, o patrimônio é irrelevante, nessa fase de formação moral e afetiva. Isso, em parte, justifica porque nem todos os filhos de pobres se tornam marginais, e muitos filhos de ricos se tornam péssimos adultos, para si e para quem os cercam.

A distância esfriava, dia a dia, o relacionamento conjugal. Além disso, Leila passara a ajudar os pais financeiramente, às escondidas, de forma a que a frustração de Rômulo aumentou, vez que não tinha muito acesso aos ganhos da mulher. Mesmo assim, as aparências estavam sempre mantidas. Rômulo, na comarca da mulher, se identificava como empresário e gostava muito quando os nativos dali também o chamavam de doutor.

III

Leila meditava defronte do espelho, enquanto se penteava demoradamente. Preparava-se para um jantar que haveria na sede da comarca em homenagem ao Presidente do Tribunal. Reminiscências da filha e do marido vinham a sua mente. Sentia-se culpada pela rejeição de Mara, classificando-se como uma mãe ruim, mas sempre desculpava a si própria que não havia outro jeito de ter chegado até ali sem o sacrifício da convivência com a filha. Não sabia dos namoros dela, de suas preferências e os contatos das duas eram sempre conflituosos. Ao marido, pensava que ele nunca a amara verdadeiramente e que o interesse dele se restringia ao dinheiro. Tinha consciência dos esforços de Rômulo para seu sucesso profissional, mas não se martirizava com isso. Achava muito justo que ele tivesse bancado tudo, afinal, por culpa dele, o pai não lhe remeteu mais dinheiro, após o casamento. Abruptamente, teve seu monólogo interior interrompido pela empregada:

- Drª Leila, posso preparar o jantar?

- Não, não... não vou jantar em casa esta noite e devo voltar tarde. Você está dispensada.

Deu-se conta da hora e apressou sua arrumação. Não queria se atrasar e depois de funcionar seu carro, saiu rapidamente.

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O jantar teve a presença não só de profissionais do Direito, mas havia pessoas do governo e políticos importantes. Os discursos aconteciam amiúde, o que tornava o conclave enfadonho. Leila procurava se entrosar com todos, em especial seus chefes. Percebera, já de algum tempo, que apenas seus dotes profissionais não estavam sendo suficientes para que obtivesse uma promoção e queria tirar proveito daquela ocasião.

Em certo momento, teve de se levantar para ir ao toalete. No caminho, percebeu um homem que estava no saguão. Sentiu-se atraída por ele, tendo seus desejos sidos acoroçoados pela carência afetiva que sentia nos últimos tempos. Quando retornou, foi apresentada por um de seus pares a um desembargador, com o qual manteve alguns minutos de conversa. A certa altura, o filho do desembargador se achegou e Leila teve presente que era o mesmo homem do saguão. O desembargador, a seguir, foi chamado à oratória, e ela ficou por ali conversando com o rapaz. Depois desse momento, permaneceram juntos até o final do jantar.

Alguns dias depois, em seu gabinete, Leila recebeu flores com um convite muito gentil para um almoço. Era Marcos, o filho do desembargador. Aceitou. Depois disso, outros convites se seguiram e principiou um romance entre os dois.

Este novo relacionamento foi o golpe de misericórdia no casamento de Rômulo e Leila, que não se comprazia mais da presença do marido. Certa feita, Rômulo veio sem avisar e surpreendeu sua esposa com o amante em seu leito conjugal. Tentou reagir, mas foi logo dominado. Marcos era muito mais forte do que ele. Rômulo ouviu coisas infamantes dos dois, coisas que jamais imaginara ouvir. Entendeu, naquele momento, que sua vida desabara e o chão sumira a seus pés. Até hoje não sabe como teve forças para retornar à casa do pai.

Alguns meses depois, Rômulo recebeu uma notificação para comparecer a uma audiência no fórum. Leila, a sua Drª Leila, estava se divorciando dele!

EPÍLOGO

A juíza abriu mão de todos os bens que estavam com Rômulo, mas fez questão da guarda da filha. Conseguiu isso com a influência do sogro desembargador. Aliás, hoje trabalha na capital em companhia de seu novo marido. As promoções e benesses tornaram-se fáceis. Essa união também resolveu o problema dos familiares da juíza no Mato Grosso do Sul, que hoje conseguem facilmente créditos para financiar a produção, e outras coisa mais.

Mara que era rebelde se tornou uma revolucionária na casa onde foi viver com a mãe e o padrasto. Fugas de casa tornaram-se comuns e as amizades da menina eram da pior espécie. Por vezes, policiais a reconduziram à casa da mãe, entorpecida pelo uso de drogas. A clínica em que foi internada não resolveu nada e quando soube que a Drª Leila estava grávida, sua conduta se agravou mais. Para mantê-la no internato, um tratamento de 'choque' tornou-se constante.

Rômulo perdeu o carro e a casa, consumido pelos agiotas e pelas prostitutas que se tornaram vezeiras em sua nova vida. Com exceção da mãe, toda mulher que vê considera como vadia. Da filha, notícias mais não teve. Tornou-se um alcoólatra, apesar de nunca ter se dedicado a esse tipo de vício em função de uma úlcera que o acompanha desde a infância.

Quem vai à barbearia, hoje em dia, raramente encontra Rômulo pela manhã. As carraspanas o impedem de comparecer no local de trabalho. Às tardes, quando se o consegue encontrar, ainda se pode confiar no corte de cabelo dele. O alcoolismo não tirou a habilidade para o ofício herdada do pai, aprimorada pelos cursos que fizera. O cliente só precisa esperar, quando o tremor de suas mãos está muito intenso, que ele vá aos fundos do estabelecimento e volte, quase como um ritual. Nos fundos, habilmente escondida, fica uma garrafa de aguardente que serve para o reequilibrar.

Quanto ao pai de Rômulo, cujo nome não apareceu neste conto, só resta olhar para sua mulher, ao dormir e bradar:

- Onde foi que eu errei?

di Arauj hür
Enviado por di Arauj hür em 12/03/2007
Código do texto: T410345