VIDA: OBRA DE  ARTE INACABADA

 

 

 

 

Todos os dias penso que poderia ser outra pessoa, trabalhar em outro lugar, ter feito outras escolhas, mas sempre me vejo aqui, perdendo o momento, tenho mulher e filhos, um casal, o menino nasceu com alguns problemas, segundo a médica que atendeu teve privação de oxigênio na hora do parto, para Elisa foi como dar a luz a um mostro, para mim foi indiferente, para ser sincero, foi melhor, pelo menos sei que não vai sair usando drogas e cobrando uma posição de pai presente, coisa que nunca consegui ser .

 

O nome dele é Lucas, têm inteligencia normal – defina normal?Péssimo em matemática, reprovou duas vezes, se fosse anormal eu também seria .

 

De defeito físico tinha apenas um defeito na perna e no braço esquerdo, têm quinze anos, torce pelo Flamego e gosta de ler romances de mistério, ou pelo menos começar a ler e gosta de comprar os livros, colecionar, catalogar e colocar em ordem.

 

A menina é quieta, fala pouco, quase não tem amigas, nasceu depois de Lucas e ficou quase que completamente sem atenção da mãe, eu nunca dei atenção a nenhum dos dois,confesso que ser pai foi um acidente de percurso na minha estranha vida.

 

Com oito anos, nuca sorria, posso confessar que minha filha era estranha, não conheci uma menina que não gostasse de bonecas, fazer amizade, ou de televisão, ela fica lendo o tempo todo, coisas esquisitas, histórias macabras, conhece os monstros, vampiros, assombrações.

 

Elisa queria Levar Diana em um psicologo, ela se recusou, quando a levamos em uma psicologa, gorda com cara de cozinheira de restaurante, a menina gritava na porta do psicologo, argumentou que era diferente e gostava de ser assim, diferente como o irmão 'retardado', só que eu e a mãe respeitávamos a diferença do irmão e que nós achávamos a diferença dela uma especie de loucura.

 

Depois de um tempo parei de me importar, quer dizer, pare de pensar que me importava, parei de me enganar.

 

Comecei a trabalhar na recepção de um hospital, ganhava um salario de miséria e ainda tinha que ouvir reclamações, minha mulher era professora, ganhava mais, porém tinha que trabalhar em dois empregos, engordou e ficou esquisita, fumava para combater o estresse, seus dentes ficaram amarelos, já não tinha nenhum desejo por ela.

 

A verdade é que não tinha desejo algum por ninguém, gostava de minha cabeça vazia, sem pensar em nada, muita gente supervaloriza o sexo, eu não dou a minima.

 

Pegava um ônibus a seis e trinta, levantava da cama fedendo a cigarro, escovava os dentes.O pior de tudo! Que era uma lastima entrar no no banheiro, a verdade?Toda a verdade, vou dizer: é que meu banheiro nunca estava limpo, sempre sonhei com um banheiro limpo, mas o meu nunca ficava limpo, tinha sujeira por todos os lugares, roupas espalhadas, papel higiênico, e não era de assombrar ver uma bosta de cachorro.

 

Tenho dois, um picher e uma pequenez, nem sei os nome daqueles diabos, eles só servem para infernizar a minha vida, ficam correndo de um lado para o outro, deixam a casa fedorenta e fazem a bosta deles aonde bem entendiam, não adianta sair para passear, eles voltavam do passeio e davam preferencia ao banheiro ou a varanda do nosso belo apartamento. O cubículo financiado que ficava em subúrbio distante de tudo.

 

Diante desse inferno, nada podia piorar, mas piorou.

 

Meu pai ficou viúvo, logo depois, sem a minha mãe para fazer tudo, ele ficou com raiva do padeiro e teve um AVC, para quem só tinha um filho – eu.


Onde vai  o outro pai miserável : morar com a esse pai, eu, tão misiserável quanto ele, no primeiro dia parecia um ato de bondade do qual nunca me arrependeria(ninguém é perdoado pelas suas grades bondades), apesar do meu pai ter sido um safado, que traiu a minha mãe até esfolar o peru, nunca fez nada, nem por mim, nem pela minha mãe,acho que nem pelas amantes.

 

A única amizade que fez foi com Elisa, isso tenho certeza, foi só para me chatear.

 

Unidos para transformar a minha vida num inferno, claro que no primeiro momento que ele adoeceu Elisa foi logo buscar o velho para morar com a gente,ela já me odiava nessa época e sabia que eu odiava ele.

 

Ele não conseguia andar direito, tínhamos que ajudar e segurar na sua mão sebosa e suada, minha filha ou meu filho ficavam encarregados de vigiar o meu pai, mas não ligavam, o ódio pelo avô veio de uma origem genética , toda vez que chagava em casa ele estava caído em algum lugar, meu filho no videogame e minha filha no quarto lendo alguma revista nova sobre vampiros.

 

Ver meu pai caído sem falar, todo urinado foi tosco, mas lá no fundo tive uma satisfação, não sentia pena, não sentia nada, ele apenas dava um trabalho doido para mim e para Elisa. O velho Antônio tinha perdido a memória, gritava e babava 24 horas por dia.

 

Parei de fumar em 1990, foi um marco escatológico, o dia que joguei o meu único prazer fora por uma vida de merda e mais longa, uma longevidade infeliz, todo mundo dizia :”pare de fumar isso vai fazer mal, dá câncer'.Queria que todo mundo fosse se foder, câncer, tem horas que a vida saudável é um saco, o poder biológico do mundo civilizado: 'se você fizer assim vai ser bom para você'.

 

Magro de doer, sempre pude comer o que quis que não engordava, acho que isso é uma dessas coisas que só a genética explica, um desses genes inibidores da obesidade, meu colesterol é 140, mesmo se eu passar o dia todo comendo torresmo, já a pobre da Elisa se comer um alface engorda quatro quilos e seu colesterol dispara.

 

Beber ? Não bebo, acho que o meu pai foi um bêbado, todas as noites chegava pelado, mijava na sala e vomitava no sofá, minha mãe vinha com um pano limpando e me mandava para cama, álcool ficou marcado no meu inconsciente com as coisas que só um pai filha da puda faz para foder a consciência de filho, magro, feio e sem inteligencia como eu, coloquei toda a culpa no álcool, nunca bebi.

 

Droga?Cocaína, maconha, sou meio fraco para isso, tenho medo de Policia e de bandido, então como ia comprar drogas? Cago de medo ,acho que se der uma puxada num cigarro de maconha vou pegar câncer no cérebro, convivi com gente que se drogava, achava a vida deles até melhor que a minha, mas eu mesmo nunca vou me drogar, porque sou um medroso fodido.

 

Naquela noite Elisa, nas raras vezes queria fazer sexo.

 

-Não dá – disse virando de lado, porra ela tinha carne entre os dentes e fedia a comida velha, misturado com cigarro e cerveja, Elisa naquele tempo era tão feia que parecia um homem.

 

-Tem mais de mês – disse Elisa– porra Levi, você está saindo com outra?Caralho, eu banco essa casa, pago tudo nessa merda, e você sai com as piranhas da rua?

 

-Não aguento você Elisa, vai para uma academia, faz as unhas e o cabelo, você não têm vaidade? – disse e estava sendo sincero, queria só voltar a fumar. Não queria sexo que dava muito trabalho, mas hoje ninguém quer um fumante por perto, você pode se matar de várias maneiras, menos da maneira que a sociedade proíbe.

 

Virou a cara e foi dormir.

 

Meu filho me chamou, tinha alguma coisa estranha com a sua visão.

 

-Pai , não estrou enxergando nada – disse colocando a mão no olho.

 

-Abre bem o olho – Elisa gritava enquanto eu segurava a mão dele, ficou cego, ele tinha uma síndrome clinica, uma porcaria que acontece 1;1000000, os médicos confundiram com uma paralisia, depois de quatro meses, ficou na cama, dois anos depois pegou uma pneumonia e morreu, antes do meu pai, o velho ainda durou muito.

 

Nessa época, achava que a minha filha nem existia, era só uma sombra no quarto lendo, lendo, sobre mostro e demônios.

 

Quando completou quinze anos, passou a usar constantemente o preto, jogou todas as outras roupas fora.

 

-Ela pertence a uma seita, ou alguma coisa assim? - perguntei a Elisa.

 

-Porra, deixa ela, você não é pai para ela, não entende a menina, que livro você já leu? Ela lê muito, decidiu ser assim, pior ainda, você não percebeu, ela gosta de meninas.

 

-Você tá de sacanagem?

 

-Levi, você é o pai mais escroto da face da terra, se o diabo tivesse um pai ele ainda seria melhor que você – disse levando uma cerveja e um prato de carne desfiada para frente da TV, agora não estava mais gorda,eufemismo, ela era uma balofa gigante, um mostro japonês dos filmes de Jaspion, mole e sebosa, meu pai morreu uns anos antes, quando Elisa estava para aposentar.

 

O meu trabalho no hospital já tinha mais de vinte anos, um trabalho ruim que ninguém quer ficar, onde você é todo dia insultado, parece ser o escolhido para mim, gostava disso, me fazia de importante, insultos, palavrões e desrespeito, quem não gosta disso?Mas de alguma forma consegui ter um reconhecimento como o cara que sabe e resolve tudo na recepção do hospital, afinal são quase vinte anos nessa merda.

 

Tenho 54 anos, parece que a vida passou por mim e só lutei, lutei, nada de bom eu tive, casei com Elisa jovem, ela já tinha um emprego e eu queria sair da casa dos meus pais, Elisa vai fazer 60, não desejo mais nada com ela, nem sexual, nem falar,nada, passou a ser a pessoa mais insuportável que conheço, acho que nunca a desejei, quero apenas ficar parado e ver a vida passar longe da minha casa desorganizada e barulhenta.

 

Meus amigos, se assim posso chamar aqueles vizinhos que costumam almoçar domingo na minha casa a pedido de Elisa, Valter e a Mulher Sabrina, Eugênio e Paula, são os casais que moram um no andar de cima e o outro no andar debaixo, não são da minha espécie, Valter bebe demais e só fala putaria quando esta bêbado, Elisa ri dele com os dentes amarelos, boca suja de comida e halito de cerveja. Sabrina é uma mulher magra e mesquinha, se diz feminista e defende a tese que toda mulher mesmo casada deve se masturbar, pois o homem não entende o prazer feminino. Minha filha quando escuta essas barbaridades além de apoiar começa a dar a suas gargalhadas.

 

Eugênio é um ex padre, casou com Paula, uma professora secundaria que teve câncer de mama aos vinte e cinco - vocês podem imaginar! - é só tinha uma mama, Eugênio casou com ela depois que conheceu em uma dessas obras de assistência para quem tem câncer, era ciumento e não queria que a mulher fizesse qualquer tipo de cirurgia – porra pelo menos colocasse a outra mama.

 

Eu ficava calado na maioria das conversas, Valter era ateu, Eugênio, apesar de ex padre era um católico praticante, e os dois bebiam pra caralho, quando estavam bêbados a discussão religiosa começava, sai de perto, pois Eugênio, ex padre tudo mais, defendia a sua ideia religiosa com o maior numero de palavrões conhecidos, Valter dizia que Deus só existia na cabeça das pessoas, na pratica não prestava para nada, a luta pela sobrevivência e o medo da vida,segundo ele a vida era perversa, era tudo que sobrava para o ser humano.

 

Eugênio dizia que o ser humano era um ingrato, que Deus tinha abandonado o homem porque ele só fazia merda, desde que saiu do paraíso, segundo ele o homem perdeu o rumo, Valter falava que o paraíso era chato e o que proibiram as pessoas de transar, várias vezes um acertava um soco na cara do outro e paravam chorando no hospital, pedido desculpas um para o outro.

 

Valter morreu com 60 anos e Sabrina teve que se masturbar por mais seis anos, depois morreu vitima de um AVC, Eugênio e Paula, viveram muito tempo, quando eu estava com oitenta anos Eugênio já tinha noventa ainda estava vivo, conversava e era assíduo frequentador da igrejas, assim como a mulher Paula, depois mudaram para a casa de um sobrinho de Eugênio, nunca mais vi.

 

Elisa morreu subitamente, só vi minha filha com a namorada no dia do enterro, ficou parada, gorda como a mãe e toda de preto, ela parecia mostrar por fora o que eu era por dentro, fez um movimento com a mão,adeus,até logo, não sei dizer, depois nunca mais vi.

 

Fico perguntando, para que viver até os noventa e sete anos? Vale a pena, deitado nessa cama, sozinho, será que vou terminar a minha vida aqui, sorte que ainda tenho três cigarros.

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 05/02/2013
Reeditado em 09/09/2013
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