O troco

Estremeceu: era chegada a hora, teria de pagar a conta. Havia contado direito? Todos os pedidos, todas as bebidas, tudo? E se tivesse deixado passar alguma coisa, o que faria? Lembrava ainda de ter dito às crianças “tenham calma, papai tem ainda outras coisas a pagar com este dinheiro”. Tinha mesmo, muitas contas para pagar, mas não com aquele dinheiro. Aquele era contado e único, tudo o que restou do triste salário. Mentalmente, Antônio costumava organizar as dividas de uma maneira complexa, mas eficaz: primeiro considerava os vencimentos, depois as multas e, o mais importante, quem viria a cobrar-lhe. Num primeiro momento, tudo parece simples, mas tendo dois filhos, uma esposa, dois gatos e um cachorro, as coisas mudam de figura. Hoje mesmo, Antônio tem a fatura do cartão a vencer, amanhã vencem o mês da padaria e do açougue – o supermercado Antônio paga o atrasado apenas para poder fazer a compra, fiado, do mês. Isso são coisas só do agora, só desta data, dia nove de dezembro, aniversário do filho mais velho.

Antônio quis um dia especial ao menino e espremeu ainda mais os gastos do novembro, operou milagre, tudo que pôde. Só sobrara-lhe aquilo, o limite do banco havia sido bloqueado, o cartão não tinha mais crédito, só tinha aquele dinheiro – e só era nove de dezembro. Mas todo mundo merece algo especial. Todo mundo não, talvez seus filhos, ele e a esposa não, “não carece, a gente se dá com o que tem” diziam eles sempre aos parentes. Ainda assim, era um dia especial. O garçom vinha com a conta na bandeja, como se fosse algo de comer, um prato indigesto talvez. Antônio ia se lembrando, no divagar da mente que faz o tempo vagarar, da saída de casa. A esposa vestia tão bonito seus filhos que nem pareciam seus, pois era um bruto de carnes, fruto do trabalho, da dignidade que ele tanto preza. As roupas velhinhas, mas tão bem cuidadas, a mulher devia de ter mãos de anjo para fazer as roupas durarem tanto e em tão boa conservança. A calça do menino tinha a barra um pouco curta, mas vá lá, “isso é coisa que ninguém repara”, dizia às crianças. Doía dizer aquilo aos pequenos, pois sabia que diziam das suas roupas na escola. O que pensariam? Aquilo não era reparar? O que era? A pequena perguntou certa vez e Antônio ficou sem jeito: “Papai, por que todo mundo usa lancheira? Não é mais fácil sacolinha como a nossa?”. Era, claro que era, havia de ter dito isso – não se lembrava mais. Era mais fácil, inclusive para ele, mas para a pequena…não sabia. Lembrou-se triste sim, mas vivia feito suas mãos: de tanto mergulhar naqueles líquidos assassinos, iam descascando-se e trocando de pele, perdendo as digitais, a identidade, mas continuava a fazê-lo, mesmo sem entender o que acontecia ao certo, perderia as mãos talvez, mas isso seria problema para outro dia. Passou.

A bandeja pousou na mesa feito uma ave rara, brilhante, cheia de “boas noites, meu caro senhor”. Era chegada a hora. Tremia, tremia sim. A esposa tinha olhos atentos, vidrados no marido, também ela estava apreensiva? Talvez, mas ao menos estaria isenta, a ideia havia sido do marido. Aquele medo, aquela apreensão, certamente era humilhante, mas essa humilhação de si para si mesmo, que não transparece, é clara só no brilho dos olhos. As mãos não tremem, as lágrimas não correm, tudo é como um levantar-se para o trabalho. Mas havia os filhos, havia o dia especial, havia aquelas barriguinhas cheias de coisas novas e os sorrisos cheios de alegria, isso havia. Antônio alegrava-se com esse pensamento, mas, ao mesmo tempo, sofria, se flagelava, perguntava doido, com a cabeça a mil pensares: “Por que não todo dia?”. Pergunta das mais ótimas que se possa pensar, mas a mais sem resposta, pois que Antônio não a endereçava à ninguém – sabia disso? Não importa, pois as mãos principiaram a tremelicar, porque viu os filhos o fitarem com o olhar imitado da mãe. Que arrepio correu-lhe os pelos do braço! Será que eles já haviam tomado ciência do que era aquilo? Será? É sempre mais fácil pensar na inocência das crianças, na inocência das gentes, mas Antônio agora se perguntava se havia ainda diferença entre criança e gente crescida. Quem é que diferenciava? Pensamenteira! Tomou coragem e abriu a bonita carteira – muito mais bonita que a sua própria – que trazia a conta.

Nem não fez gesto nenhum com as mãos. Eles ficaram a suspender tudo ali, paralisado, na sua frente. O olhar apreensivo desapareceu, não mais tremia. Soltou um bafo cansado pelo canto da boca e, quase de instante, os olhos entristeceram. Passavam ali bem uns vinte do que carregava no bolso. O que iria fazer? As crianças que fossem ao banheiro, fossem brincar, uma ordem, um divertimento dolorido. A esposa fez cara de desgosto e ele mesmo não sabia que cara fazia, talvez fosse melhor assim. Ninguém conhece a cara da derrota até se deparar consigo no espelho. Um outro talvez não veria, pois que os olhos do derrotado tem poderes mágicos, misturam o que se vê dentro da gente com o que nos traduz o espelho, uma alquimia que só os mais humanos conhecem de segredo. A esposa não tinha nem cinco, não adiantaria, teria de dar um jeito. Como foi que deixou passar? Ficara atento todo o tempo! Mas agora se lembrava, virou-se para admirar um prato de comida bonita que a mesa de um cidadão próximo havia pedido. Era tão bonita, não era muito, mas era bonita. Quanto tempo perdera nessa contemplação? “Suficiente!”, respondeu duríssimo a si próprio. Era encarar o balcão e a cara feia do gerente, afinal, era um dia especial.

O simpático e gorducho gerente apertou-lhe firme a mão. Homem correto, bem vestido, trabalhador com modos de patrão, dos mais atores não há. Pois sim, pois não, a diferença era alta, e haveria Antônio de dar um jeito de pagá-la. “Aceitamos cartão, aceitamos cheque”, não aceitavam aquele dinheiro? Antônio de tudo fez, do seu fraco discursar, explicou a honestidade dele mesmo, pois que poderia mentir ali uma bebida a mais, um prato com perna de barata e, supimpa, a diferença sumia! O simpático e gorducho gerente só fazia ajeitar a gravata, mas arredar o pé da decisão não arredava. Antônio, desesperado, não sabia o que fazer, gesticulava forte, falava alto, não sendo rude, mas tentando explicar ao moço a data especial, as crianças sorrindo. As crianças sorrindo…os pequenos haviam já se achegado junto à mãe e assistiam àquela cena com cara bicuda, entendidos – claro –, tristes – claro –, mas com quem?

A situação foi tomando rumos e rumos e o gerente, simpático e gorducho, perdeu a paciência. Antônio respirou fundo, ia sentir-se aliviado – pois que situação resolvida é boa de quase todas as formas. Estava quase a respirar tranquilo, mas o simpático e gorducho gerente bateu forte no balcão do caixa: “Não! Não quero saber!”. Era o fim. Que diabos poderia fazer?

Pensar muito nem foi necessário, um casal muito do bonito, viu e ouviu toda a situação ali de perto e o homem disse firme: “Deixe que eu pago o que falta”.

Frase bonita essa, fez o gerente sorrir de instante, feito um relâmpago que marca o céu negro. Deu-lhe lá o que faltava e um pouco mais. Antônio, a esposa, as crianças e quase todo o restaurante só faziam assistir. Todos em volta esperavam o gesto de Antônio, tamanha era a bondade daquele homem. A esposa também o olhava, agora com os olhos duro de uma briga, mas ele já havia entendido. Engoliu tudo o que sentia, mas só até o comecinho da garganta, forjou, a duros golpes de martelo, um sorriso: “Obrigado”. O homem fez só um gesto que se deixa para lá, como coisa corriqueira para ele, sublime que era. Antônio nem não puxou mais prosa com o homem, por hoje estava ótimo, podia dormir já derrotado o suficiente, como o de costume, nada fora dos normais dias.

As crianças passaram devagar a porta e a esposa já se encaminhava também. Mal Antônio olhou em direção à família o gerente soltou o verso decorado de panfleto, costumoso como era: “Muito obrigado, senhor, volte sempre. Fico feliz que tudo foi resolvido, afinal, dinheiro nenhum vale o sorriso de uma criança”. Engraçado, pensou Antônio, tinha ouvido mesmo aquilo? Era possível? Já sua tristeza borbulhava em raiva fervente, soltava baforejos pavorosos pelas narinas. Antônio era homem muito bem feito, braços fortes de trabalho duro, poderia quebrar aquele restaurante todo, mostrar para todo mundo o que pode um pai fazer pelo filho, mataria todos se fosse preciso, mas contente ainda ficaria se só o fizesse ao gerente. Como pode aquele homem tê-lo dito aquilo? Como? Na frente dele, de sua família, de dezenas de estranhos. Ia destruir tudo, ia resolver tudo, pintaria quadros e quadros, quinas e cantos de vermelho vivo. Todos pareciam ouvir os pensamentos de Antônio, de olhos esbugalhados, uns rindo baixo e divertindo-se com o que dali pudesse sair. Antônio não via, olhava só para o gerente, assustado, mas ainda cínico, sorriso amarelado e feio. Só poderia mesmo matá-lo, não podia humilhá-lo, não havia como. Não tinha nenhum dinheiro, nenhum respeito nunca teve de ninguém, teria de matá-lo. Quem sabe a prisão não o valesse algum desconto no sofrimento de si e das crianças…as crianças! Olhou-as, os dois pequenos também com os olhos arregalados, mas ainda diferentes, opacos, olhos de medo. Ao contrário dos olhos de tristeza, que têm tantas e tantas formas em nossa natureza, esses olhos de medo de criança Antônio conhecia bem, desde a infância, sabia quem as crianças temiam, sabia que era a ele próprio. Foi então que reafirmou sua decisão, “hoje seria um dia especial…”, com certeza até ali já o era inesquecível, “um dia especial”. Voltou a olhar firme nos olhos brancos do gerente, suado e engravatado. A boca de Antônio parecia mastigar ainda o jantar, uma carne dura talvez, pois que mastigava com força.

Estremeceu. Era chegada a hora, haveria de fazer aquilo. Aproximou-se com passos lentos, duros, do balcão. Engoliu tudo o que sentia mais uma vez, ainda que houvesse mastigado tanto, o sabor era horrível, havia de humilhar-se novamente. “Quem sabe quando as crianças estiverem mais crescidas e entenderem ter raiva deste garçom, deste restaurante, desse dono de tudo isso, desse tal dono do mundo, quem sabe então eu aí possa saltar para dentro deste balcão e acabar com tudo de uma vez por todas? Quem sabe…mas agora não, ainda é cedo”, nunca Antônio havia tido um pensamento assim, nunca esse ápice de dolorosa lucidez. Quando é que havia tido tempo de pensar em tudo? Vivia, sim, carecia de viver, sabe-se lá o porquê, mas não entendera nada até ali – havia entendido? Olhou as crianças de relance, seus olhos próprios já se entristeciam. Fez o que sabia fazer tão bem, quase uma vocação, voltou-se ao gerente: “Obrigado. Pode ficar com o meu troco”.

Vinicius de Andrade
Enviado por Vinicius de Andrade em 06/02/2013
Reeditado em 06/02/2013
Código do texto: T4126813
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