VERITAS

Acordou cedo, sentou na cama e disse para a mulher: “Hoje vou embora de casa”. Ela (não sei se não ouviu ou fingiu não ouvir) apenas se aninhou nos lençóis e pediu, grunhindo, que ele a deixasse dormir mais um pouco.

Ele foi pra cozinha, preparou o café e depois voltou ao quarto, da porta chamou: “Sete horas”. Ela teve que levantar, o Alexandre entrava às 8 na creche.

Durante o café, não falou mais nada daquilo. Ela arrumando o Alexandre que, sonolento ainda, reclamava, com um chorinho de dengo. Ela metia comida na colher e empurrava nele, “toma o iogurte, Alexandre”, “Toma esse café, menino”. Ele observava aquilo com atenção. Era a última vez que ele iria ver aquela cena na vida.

Uma hora ela perguntou, porque o viu muito concentrado na cena: “Nunca viu teu filho não, Gustavo?” Ele fez um carinho na cabeça do menino, juntou a xícara e o prato e botou na pia, indo escovar os dentes.

No carro, antes de dar a ré, ele ficou uns 3 minutos olhando a frente da casa. Ela, preocupada com o Alexandre no banco de trás, não reparou. Ele saiu fechando o portão com o controle.

Casal bem sucedido. Ele, gerente de uma empresa de seguros, grande, a maior da cidade. Ela, diretora da creche onde o Alexandre estudava. Carro do ano, casa em bom condomínio, o menino no judô e no inglês desde bebezinho. Amigos influentes, presença nas colunas sociais. Um casal perfeito.

Ele voltou meia hora depois de deixar Cristina na porta da creche. Beijou a mulher, beijou o Alexandre e saiu apressado. Era a última vez na vida que fazia aquilo.

“O Alexandre é um presente de Deus”, Cristina sempre repetia nas rodinhas de amigos. E debulhava: lindo, inteligente, forte, saudável e muito criativo. Vai ser um médico ou advogado de respeito. Os presentes assentiam. Gustavo só abria um sorriso amarelo.

Chegou em casa, foi na despensa, pegou a mala e pôs as roupas que já tinha separado no cabide, na sequência que ele queria. Cristina não notou, quem arrumava era a diarista.

Foi ao escritório e pegou uma pasta com os documentos que já tinha separado. Os livros que amava já estavam esperando, um ao lado do outro. Ela não percebeu que ele rearrumou a estante. Nunca ia lá.

Deixou um recado no tampo da mesa da sala: “Disse que ia embora de casa hoje. Você não ouviu. Já me acostumei. Você nunca ouve, Cris. O João Paulo, nosso amigo advogado, já está instruído pra tratar com você. Seja feliz.”

Fechou a porta da casa, pôs a mala e a sacola com os livros e os documentos no banco de trás e abriu o portão. Pela última vez. Na saída, não fechou. Superstição. Deixou que ele fechasse sozinho. Duzentos metros adiante, jogou o controle contra o muro.

Cristina não entendeu porque Gustavo foi embora. Tentou ligar pra ele centenas de vezes. “Este telefone está programado para não receber ligações”. Ligou para os amigos dele. Ninguém sabia nada, tão surpresos quanto ela. “Mas por que ele fez isso, Clarice? Por que, meu Deus? Eu só queria saber...” Chorava descontroladamente e se desesperava para Clarice, pela centésima vez. “Nós tínhamos um casamento perfeito!”

“Perfeito demais, meu caro”. Foi o que Gustavo disse a Pedro, naquela mesma noite, numa boate em que ia regularmente, nos happy ends da empresa. “O que é perfeito demais na vida é perfeito demais pra ser verdade.”