Réquiem da arte

Julinho acordou triste. Nada parecia mais o que era.

Não podia acreditar que o sol nascera de novo, que os pássaros insistiam em cantar e que seu patrão não haveria de entender a sua falta, ou na melhor das hipóteses o seu atraso. Como seguir a vida? O dinheiro da aposta nem importava mais, afinal pra que serve o dinheiro se a vida parecia não valer à pena. Ninguém conseguiu explicar, nenhum comentarista, nenhum crítico (e haviam convocado os melhores) o que aquela bola estava fazendo no fundo do gol. Julinho se desesperou, os que estavam com ele em frente ao telão da avenida ensaiaram uma revolta, mas a pasmaceira era geral e nenhum gesto destrutivo houve. Todos em catarse. Nada igual jamais foi visto, aliás, só podia ser truque da televisão, com certeza: tratava-se de “replay”! Nenhuma dúvida, alívio geral: era “replay”!

Mas à medida que os olhos incrédulos acompanhavam os lances, a coisa toda foi ficando clara: havia desespero em campo, o esquadrão se desmantelava a cada virada do ponteiro do relógio. Relógio este que parecia acelerar a cada volta, mais e mais. O apito veio como golpe de foice da morte, morte que se anunciou naquele terceiro gol. Julinho perdeu a fé: o cara tava preso, como foi que se deu de soltarem esta criatura apocalíptica e ela veio fazer logo três gols, justo nesse jogo? O país ficou mudo, as ruas desertas, bem como ficaram solitárias as loiras geladas, as morenas do samba, a praia, o boteco, tudo perdeu a razão de ser. O pesadelo assombra Julinho até hoje. Sua portaria nunca mais foi a mesma, não teve mais piada nem gozação, seja de funcionários, colegas ou moradores, até as cores do seu time de coração desbotaram. A Tv de cinco polegadas que comprou do camelô para ver a grande final nunca saiu da caixa, seu radinho de pilha passou a ocupar lugar na gaveta até que um dia alguém levou. Levaram para nunca mais, a tal da terra do nunca pensou Julinho. Tentou acompanhar outro esporte até que as suas manhãs de domingo também ficaram tristes. Nem as três finais de Copa consecutivas animaram Julinho. A arte foi para a tumba naquele fatídico cinco de julho e junto com ela o gosto de vibrar numa arquibancada em um domingo ensolarado.

Vinte e quatro anos depois o “seu” Telê também foi.