BARCOS DE PAPEL
 
 
            Como lidar com o fim? Para que ler uma história que termina desse jeito? Nesse breve relato todos perderam, foi o fim e o ser humano não sabe lidar com o fim, eu realmente não sei, o fim me aterroriza.
 
             Uma vez vi em um filme nacional a frase “tudo na vida acaba a única coisa que não acaba é o final eterno de todas as coisas”.
 
            Amei uma única pessoa, mas ela acreditou que eu era um ser perfeito, então quando ela descobriu minha imperfeição tudo acabou.
 
            Conheci Alice em uma festa do campus, ela era nessa época, uma linda estudante de psicologia, estava sentado conversando com um amigo quando ouvi sua conversa, pois a musica não estava tão alta era um jazz, ainda hoje me lembro.
 
            -Você sabe o que é uma carpideira? – Perguntou, mas não deixou a sua amiga responder continuando, falava e gesticulava de forma graciosa. – Elas representam o espetáculo do luto, choram em enterros, uma farsa, cara isso é lindo! Entende Marta, só para manter o clima de tristeza, assim como a risada enlatada dos seriados de humor.
 
            Um dia você se arrepende de escolher alguém que considera extraordinária, gosta da beleza, da inteligência, basta um minuto para isso acontecer, pronto, foi fisgado! Sim é uma espécie de mágica, às vezes apenas escutar a voz. Assim ocorreu quando conheci Alice, nunca mais aquela voz e aqueles olhos saíram da minha cabeça.
 
            Uma piada clássica explica a importância do outro na nossa vida. A piada está no livro do Zizek: Como ler Lacan, claro que após ter ouvido Alice falando das carpideiras lembrei do livro, que por muito tempo andou no meu bolso, neste livro há uma piada clássica Lacaniana: “em um tratamento psicológico um homem pensava que era um tipo de grão(milho), depois de anos de tratamento ele ficou curado, então os médicos o levaram até a porta para que fosse embora, felizes pela cura, porém ao ver uma galinha o homem voltou correndo e se escondeu dentro do antigo hospital onde estivera internado. Arrasado um dos psiquiatras perguntou a ele: – Já não o convencemos que você não é um grão? E ele respondeu: – Eu já sei que não sou um grão, mas será que a galinha sabe?” Essa anedota, tão charmosa, serve para demonstrar a importância  opinião do outro nas nossas vidas.
 
 Alice, apesar de inteligente era ligada a valores, fidelidade, confiança, o homem não poderia beber, nem fumar. Uma ecologista preocupada com o mundo, com o meio ambiente.
 
            Nosso Primeiro encontro, meio forçado no campus, eu não estudava mais, tinha uma bolsa na faculdade de medicina particular, mas meu pai teve um AVC, então tive que deixar os estudos e dar aulas de biologia e química, nunca me tornaria um médico.
 
 Tive que escolher: ou deixava o velho que cuidou sozinho de mim limpando privadas; ou me tornar um médico famoso, tinha minha própria dose de ódio do mundo por isso.


            -Fiquei sabendo do seu pai. – Alice disse sentando do meu lado. – Muito bonito isso de largar os estudos para cuidar dele.
 
            Não sei por que nunca falamos totalmente a verdade, aceitamos esse papo e o papel de vítima, não gostava desse papel de vítima, sentia um nó no estômago, queria falar para Alice o que falava com meus amigos, mas alguma grande lei me impedia.
 
             Não me agradava começar a relação com Alice assim, não havia uma verdade completa nessa história de largar a medicina para cuidar do meu pai, já vinha muito mal no semestre, perder a bolsa era eminente, questão de tempo.
 
Revoltado, maconheiro e pilantra como diria o meu pai, já tinha emplacado uma prisão por porte de drogas, com medo, não falei nada, não fui totalmente honesto, quem seria?  Todos têm seus segredos.
 
            Ela tinha um crucifixo no peito, cristã, com valores, acho que, certo ou errado um homem, mesmo um cético como eu procura uma mulher assim, bonita, honesta, ela pode ser o nosso ponto de equilíbrio.
 
            -Você é Cristã? – Perguntei colocando a mão no seu crucifixo.
 
            -Otávio, nem sei. – Disse olhando para o crucifixo. – Minha mãe era católica, meu pai era batista, na minha infância convivi com a oração. Logo que meu pai adoeceu tínhamos que rezar um rosário as seis horas, a hora da avemaria, ficava tão entediada, mas sinto que há alguma coisa boa lá fora, sei lá no céu, espíritos, algo realmente bom -  ela sorriu e olhou para mim – e você, tão calado, em que você acredita Otávio?
 
            -Não acredito, apenas vivo, tirando essa falação sobre o Humanismo e Deus, o que nos resta? Não sou ateu, nem sou a favor do racionalismo científico, a razão é para alguns o nosso refúgio e a única coisa que sobra, para mim, ela é pobre serva, enganada pelas realidades criadas pela vontade humana, o ser humano faz o que dá na sua telha.
 
            -Isso é muito pessimista. – disse pegando na minha mão – não é bom ser assim, é preciso acreditar em algumas mentiras para ser feliz. – Ela falava assim, mas no seu senso moral, real ou fingido ela não perdoaria a mentira, nem acreditaria, para ela a máscara tinha que ser completa, mentira para ser aceita deveria ser tratada como verdade a vida toda, o insuportável autoengano.
 
            -Felicidade é este momento – apontei para nós dois, mostrando o momento. - Outra felicidade é a resignação diante de momentos ruins, viver é isso, posso não acreditar em Deus, mas acredito no amor, não gosto de analisar demais as coisas, apenas viver é o meu lema, a vida analisada pode não valer a pena ser vivida – disse relembrando um filósofo.
 
            -Estou espantada com a sua cultura.

             - Memorizei várias frases de efeito para te impressionar, não leio nada– ela sorriu ao ouvir o meu desatino.
 
            Vivemos felizes por quinze anos, ela formou-se em psicologia e trabalhava em uma multinacional, ganhava o triplo, meu salário mal dava para pagar a prestação da casa, ainda amava minha mulher, mas a minha necessidade se multiplicava, bebida e maconha, o dinheiro não dava.
 
Tinha um trabalho exaustivo, havia engordado e quase não lia nada, passava meu tempo em casa, ou corrigindo provas, ou assim que Alice saia para levar a nossa filha para algum passeio, eu fumava, acho que ela sabia, mas não comentava.
 
            Meu dinheiro estava curto, não conseguia pagar as contas, nem comprar maconha, em uma tarde, no pátio uma coisa horrível me aconteceu, um dos diretores veio até mim e disse:

            -Otávio, o diretor geral quer ver você.
 
            Subi para falar com o homem de terno e de ótima aparência, o colégio era batista e eles queriam um professor com fé, eu era um desgraçado de um ateu comunista, então pagariam os meus direitos, é claro que eu  estava demitido, depois de quinze anos de escola.
 
            Alice disse, de forma muito tranquila encarou a situação com tal positividade que cheguei a ter a minha fé nas pessoas retomada, será que nesse mundo existe gente de bem?
 
            -Termina o curso de medicina.
 
            -Quem vai pagar? – disse surpreso.
 
            -Eu – disse com o sorriso – amores são para apoiar, cuidar não é?
 
            Estava com trinta e oito anos, tinha uma filha de doze, mas parti para isso, estudei e voltei a me motivar, queria terminar o curso, quando estava no quinto ano, quase limpo das drogas maravilhado com a possibilidade de me tornar o que não queria na juventude Alice entrou gritando dentro de casa, parecia que estava histérica.
 
            -Você sabe de onde me ligaram?
 
            Não tinha a menor ideia.
 
            -Da polícia. – Falou olhando nos meus olhos, era ódio, eu não sabia do que se tratava e pedi que se acalmasse.
 
            -O que foi? – disse segurando a mão dela, mas ela tirou.
 
            -Nossa filha – disse me olhando – presa com traficante, maconha, cocaína, seu pequeno hábito fez escola, e que escola Otávio, a própria filha.
 
            O amor é vulnerável a fortuna, às vezes a tragédia, com certeza a dor destrói o amor. Que cai do real, que é escondido como uma máscara de mentira cotidiana de beijos, abraços e sexo, vendo sem ver o que é inevitável.

Se for algo tão frágil, ele existe ou é fruto da máscara que escolhemos, nós chamamos de felicidade do momento, então que diabos é o amor, se amamos e não perdoamos, amamos realmente? Se nós amamos e não entendemos o outro, amamos realmente?

 Eu poderia ser o cara mais limpo do mundo, mas agora aquela monstruosidade precisava de um culpado, eu era o culpado, só eu, ninguém mais, Glória, nossa filha cresceu sem pai nem mãe.
 
“O uso da droga é admissão tática de uma verdade proibida. Para a maior parte das pessoas a felicidade encontra-se fora do alcance. A satisfação é encontrada não na vida diária, mas em fugir dela. Como a felicidade não está disponível procura-se o prazer.” – lembrei-me do meu filósofo favorito nesse momento tão miserável.
 
“Pai maconheiro dá nisso?” – Pensei nas palavras do meu pai. Para mim isso não seria grande problema, toda adolescente sempre apronta, telefonei para um advogado amigo meu.
 
            -O que vai fazer? – disse Alice.
 
            -Tirar a minha filha da cadeia.
 
            Alice parecia histérica, colocou as minhas calças em uma mala, jogou tudo do lado de fora e disse. – Eu já fiz isso, Alice está com meu irmão, quero você e seus segredos fora daqui.
 
            Deitado na praia, sem saber direito o que aconteceu, de repente à vergonha de saber o que Alice já sabia ficou insuportável. A dor da certeza, pois acho que ela sabia de mim e sabia de Glória, mas a prisão da filha foi real demais, insuportável.

Voltei a dar aulas em outro colégio, passei a usar a maconha mais devagar, acho que sentia um pouco de culpa, quinze anos de juras de amor jogados fora, será que foi uma grande mentira, será que Alice não tem os segredos dela?
 
            Tarde de domingo, Glória me encontrou.
 
            -Desculpa pai, acho que a mamãe enfrentou as coisas de forma errada. – disse chorando.
 
            -Ah querida, ela está certa, não é bom lidar com drogas. Com relação ao nosso amor, meu e de Alice, as coisas são assim às vezes temos que terminar mesmo gostando um do outro, nem sempre o amor é o mais importante – sentei ao seu lado e enxuguei suas lágrimas - eu que devo pedir desculpas a você, meu comportamento não é o de pai, espero que não use drogas elas são realmente traiçoeiras e perigosas – disse abaixando a cabeça, novamente fazendo aquele teatro.
 
            -Nunca usei droga, é o meu namorado, Bruno, ele é que usa, terminei com ele depois daquilo.
 
            Abracei, ela estava mentindo para diminuir a minha culpa, afinal um bom coração. Um comportamento nobre da parte dela, me emocionou de verdade, pela primeira vez chorei sem sentir culpa, apenas chorei aliviado.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 23/02/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4154827
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