Um Acidente diferente

Os pneus frearam bruscamente e o carro arrastou-se freado, gritando muito, até o fim do quarteirão. Acho que andou assim por mais de cem metros. A rua escura, brumada, tão escura que não se via bem alguém a poucos metros de distância. Eu não vi o mendigo dormindo sob um grosso cobertor escuro, do outro lado da calçada, sob a marquise duma loja de calçados. Parecia morto.

Na rua não havia ninguém mesmo; deserta e silenciosa; silêncio quebrado apenas pela freada exagerada do automóvel no asfalto.

Desci do automóvel, meio atônito com a pancada que o carro havia dado, não em mim, mas no pedestre apressado que tentou cruzar a rua.

Olhei lá para os lados do corpo e nada vi direito. O álcool ainda embaçava meus olhos e não sentia firmeza nos passos. Os dois plantões noturnos seguidos que havia dado na clínica, junto à bebida tragada, os dois, creio, deixaram-me assim. Os faróis do carro permaneciam acesos e sua porta dianteira, do lado do motorista, aberta. Apressei os passos no que pude, até chegar e ver o corpo agonizante de um homem de meia estatura. Escondi-me por trás de uma pilastra grossa de uma loja; é que ouvi outros passos apressados vindos da calçada da rua perpendicular à que estava. Passos secos de alguém curioso que talvez tivesse ouvido o grito da freada brusca. Sem saber quem era o tal, preferi esconder-me por um instante, até os passos passarem e seu dono não me alcançar com o olhar.

Um homem alto, alvo, macérrimo, parecia preocupado com algum acontecimento recente que tivesse presenciado. Meu coração disparou, como se quisesse sair pela boca; a pressão arterial subiu. Senti pelo calor que me atingiu a face. Quieto permaneci a tudo ver.

-Mataram o coitado!

O corpo ainda tinha vida e o homem só veio notar quando, de cócoras, ao apanhar a mão do acidentado, ouviu seu gemido de socorro.

-Coitado ..., não morreu ...

O homem se debruçou a ajudar a vítima, tão entretido que eu pude deixar o local sem ser visto por ninguém. Quando entrei no carro e liguei o motor, pela distância e pela cerração da rua, não pôde reconhecer mais a placa. Voei até meu apartamento.

Setenta e duas horas depois do acidente, estava dentro de minha rotina de médico plantonista, ouvindo o colega que saía e passava casos clínicos para mim. Havia vários leitos vagos. Deveria ter um plantão tranqüilo. E foi quando ouvi:

-Esse coitado foi acidentado por um carro em alta velocidade, dirigido por um sujeito embriagado, próximo aqui à clinica.

-O que sofreu?

-Fraturas expostas, perdeu o olho direito e tiveram que amputar a perna esquerda. Mas parece que apanharam a placa do carro do bêbado.

-Como pegaram?

-Um mendigo que dormia sob uma marquise, fingiu ressonar e, de olhos bem abertos, conseguiu ver o motorista do carro e anotar a placa.

-Estou frito!

-Como? O que você falou?

-Nada ..., é que estou muito cansado e os poucos internos deverão dar-me bastante trabalho no plantão.

-Que estranho! Você se comportou como se ...

-O que você está pensando?

E assim me foram passados os onze prontuários dos internos. Daquele instante em diante não consegui mais raciocinar. A noite me foi outro barulhento acidente.

Quinze dias depois do dito plantão, quando retornei para mais um deles, haviam dado alta ao acidentado. Senti uma vontade estúpida de ir ter com o mendigo da marquise da loja, e à meia noite, quando troquei o plantão, fui até lá.

-Boa – noite, senhor ..., não está com frio?

-Tô não. Já me enrolei. O senhor é quem parece está mais enrolado!

-Por quê?

-Quase matou o coitado do homem.

-Eu? O que o senhor está me dizendo?

-Só não lhe entreguei para a polícia porque senti dó do senhor também.

-E o senhor me conhece?

-Quando estive interno por coma alcoólico lá na clínica das Palmeiras, você é quem me recebeu em quase todas as vezes. Tratou-me bem. É um sujeito bom.

-Meu Deus!

-Fique tranqüilo: dei a placa errada e a marca do carro também.

-Quanto lhe devo, bom mendigo?

-A mim, nada, mas ao acidentado, a esse sim: sabe a verdade.

-Quem? Sabe o quê?

-Ele é um coitado que nem eu. Naquele dia tinha ganhado a roupa completa de um homem que havia morrido na semana passada. A viúva gostava de nós. Coitado! Quase embarcou. Ele é um mendigo como eu. A família vai lhe procurar. Sem estardalhaço. Mas, seu carro, ao menos, isso eles vão querer ficar. Agora vá. Vou dormir. Estou com sono.

-Mas o senhor ..., que eu pensei que tivesse sido bonzinho comigo...

-Preferi ser com o colega, o outro. Precisa muito mais do que o senhor, doutor Reinaldo.

-E sabe o meu nome?

-Não durmo vinte e quatro horas por dia e sou seu cliente, se esqueceu?

-Que mendigo mais esperto!

-Também!