A PARTIDA

 

 

A minha mulher estava deitada no sofá, graciosa, os seus cabelos compridos cobriam parte da face, a outra parte enigmática olhava a TV, vestia um vestido de bolinhas que costumava vestir quando estava em casa, minha filha brincava em algum canto, todos pareciam felizes, logo saberiam da novidade.

 

Sentei na cama e chorei, há dois anos enfrentava sozinho uma situação, afinal as dores apareceram no final de fevereiro retrasado, não procurei um médico, não gosto deles. Apesar de pesquisador, também sou médico, poderia fazer o diagnóstico, para mim era uma dor costal, bem embaixo da segunda costela, ficou cada vez pior.

 

Cansado de tomar codeína, morfina, tylenol extra forte, procurei meu amigo Dr. Arlindo, clínico de nome. Arlindo era um homem cortês que não aparentava a idade, saúde de ferro, era forte como um touro diante dos seus quase sessenta anos.

 

-Porra, tem certeza Arlindo, é Câncer? - disse segurando as mão magras de Arlindo. Nos conhecemos na infância, por ele ser mais velho nos distanciamos, na nossa infância Arlindo era meio crianção, gostava de jogar bolinhas de gude.

 

-Um câncer na região do Tórax, o mesmo do Leandro, da dupla Leandro e Leonardo, raro, mas depois da biópsia não há dúvidas – disse me olhando com aquela cara de cú que os médicos fazem quando dão uma noticia horrorosa dessa.

 

Indescritível quando você recebe uma noticia dessas, primeiro você não acredita, depois começa suar frio pensando que está num sonho, depois quer mandar tudo para a casa do caralho, depois você olha para cara do Arlindo e quer dá uma porrada na cara dele, porque a culpa é dele, desse merda, que achou a porra do câncer em mim, que ainda vai viver até os oitenta e “burduada”.

 

-Tem certeza – disse largando a mão de Arlindo – porra, agora que consegui comprar a minha casa, agora que parei de beber, minha vida está melhor – olhei para Arlindo, seu aspecto magro, com jaleco largo e cavanhaque. O homem era “a figura” todo pintado de preto meticulosamente, cabelo, cavanhaque, sobrancelha. Eu falava como se Arlindo fosse Deus, como se pudesse produzir uma cura em um estalar de dedos se suplicasse pela minha vida.

 

Arlindo estava paralisado, seu semblante era de um homem cansado, covas abaixo dos olhos, olheiras negras, seu cabelo cheio de brilhantina era penteado para o lado direito, tive vontade de esganar o filho da puta, mas não sei porque, talvez fosse aquela aparência arrumadinha.

 

Eu havia procurado Arlindo, pois era o melhor clínico da cidade, mas era um filha da puta de seco, ele falava e nem tremia, não titubeava, como se dissesse: 'toma um banho e vai morrer'.

 

-Você deve procurar um oncologista o mais rápido possível – aquela frase era um clichê, “oncologista o mais rápido possível', traduzindo, você está fodido, vai acabar de se foder em outro lugar.

 

-Quanto tempo? - perguntei.

 

-Você sabe que não dá para saber isso - disse me olhando por cima dos óculos de leitura que tinha acabado de colocar – isso é coisa de filme, você pode viver até um ano.

 

Porra meu, olha como o safado fala: ”um ano!”, como se fosse tempo pra caramba, juro que passou pela minha cabeça que podia dar pelo menos um soco na cara do Arlindo, assim morreria feliz.

 

Olhei depois no manual de oncologia, a merda do tumor acabaria comigo em seis meses, era toda a vida que me restava, seis meses, nada mais.

 

Morreria, desapareceria da face da terra em seis meses. O óbvio é que tinha que falar com minha mulher naquela noite, ela parecia especialmente feliz, conseguiu o lugar para fazer o aniversário da minha filha. O aniversário era um acontecimento, seria em setembro, ou seja, em sete meses.

 

-Está pensativo? - perguntou mordendo o chocolate. Minha cabeça pervertida conseguia isolar até a minha própria morte, olhava para minha esposa com apetite renovado e ela estava especialmente sexy naquele noite.

 

Tudo tem limite, até para um apaixonado como eu, minha disposição estava na lona, mesmo para conversa, passei a mão na cabeça dela e disse.

 

-Estou cheio de problema no trabalho.

 

-Me conta, você é professor de genética, um cara importante, que problema teria no trabalho? - disse levantando e me abraçando, claramente uma introdução ao sexo, que ficava reservado para quando as crianças fossem dormir. Lágrimas rolam pelos nossos olhos por conta própria como se não fossem minhas, fossem da minha alma escondida, que nunca pensei ter.

 

São momentos como esses que me trazem felicidade, quando sei que ela está esperando por mim.

 

Não dormi, o fantasma da morte me assombrava, minhas filhas ainda estavam pequenas, minha esposa jovem, que tipo de demônio me conduzia para a morte de forma tão precoce, levantei e fui até o meu escritório, pilhas de anotações, centenas delas, horas de pesquisa, tudo em prol da ciência.

 

Que lástima, quanta vida desperdiçada.

 

Joguei tudo no chão e comecei a chorar, um choro compulsivo, que arde o peito, a morte, minha inimiga, tão cedo, nada podia fazer para me livrar, o destino bateu à minha porta, lembrei quantas vezes fiquei desamparado e tinha meu pai e minha mãe, chorei e pensei neles.

 

Ouvi a porta da geladeira abrir, era minha filha de onze anos.

 

-Papai, você me mata de susto – disse colocando o litro de água na geladeira e completou olhando para o meu rosto – você esteve chorando?

 

Abracei Amanda com força.

 

Deuses do Olimpo! Porque fizeram isso? O que me foi dado foi tirado. Eu não estaria ali para vê-la crescer, casar, ter o primeiro namorado, nem o fruto do amor dela. Minha filha era linda e parecia com Aline, seria bonita, teria um sorriso fácil e encantador, mas tudo que eu tinha agora era um abraço forte, onde quer que eu fosse levaria aquele abraço comigo.

 

Acordei e não fui trabalhar.

 

Contei tudo para Aline, foram essas as minhas palavras enquanto ela chorava no meu colo.

 

-Tive o prazer de viver dez anos com a melhor pessoa que conheci, pelo caráter, dignidade, pelo amor que me dedicou, para onde irei, se é que vou para algum lugar estarei com vocês, em toda a minha vida fui agraciado e seguido por anjos que me protegeram, muitas pessoas desprezam o passado, eu cultivo, eu amo o meu passado, cada momento que vivi com você minha querida – beijei-a nos lábios, nada mais podia fazer para diminuir o seu sofrimento.

 

O amor nunca foi uma farsa para mim, sei que errei, mesmo com Aline, mas no fundo tudo que senti por ela era verdadeiro, meu verdadeiro medo não era o medo de morrer, mas de deixar o que tanto amava, nenhuma eternidade vale a perda que sofremos ao deixar quem amamos, gosto de meu nome, da minha profissão, amo minhas filhas, minha mulher, meus livros, meus filmes, tudo vai ficar.

 

Quero pedir desculpas a todos, pois não conseguirei concluir nada tenho que morrer.

 

 

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 18/03/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4195281
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