Assim como há insônia sofro eu de despertar



     A noite já ia avançada, quando resolvi levantar da cama. Chega! Esse vira pra lá, vira pra cá, acende a luz, lê uma página, apaga a luz; vira pra lá, vira pra cá é de enlouquecer qualquer um.

     Apoio os pés descalços no chão, mas não os sinto, flutuo pelos espaços domésticos numa suave penumbra, escutando o ressonar da casa. Agora sim, uma imensa calma me abraça e empurra para longe a ansiedade por não dormir. A solidão do lusco-fusco da sala e da cozinha, onde reina absoluta a música da geladeira em compassos intervalados, enche minha alma de segurança. Neste momento sou livre.     
      Saboreio o furtivo abrir do armário em busca de biscoitos impensáveis durante o dia; pego um, dois, melhor levar o pacote todo. Com o pecado em uma das mãos, uso a outra para encostar a porta do escritório, sem fazer o menor ruído. A luz do abajur é então bem vinda e a mão desocupada acaricia as lombadas dos livros enfileirados nas prateleiras e pesca um ao acaso. 

     Nessa hora da madrugada fico a escutar o murmúrio conhecido dos livros trocando idéias entre si. Têm muito que conversar: A discussão interminável de D. Quixote e D.Casmurro a respeito do amor e fidelidade, Robson Crusoé explicando ao Guarani que não havia tentado fazer da ilha, em que havia naufragado uma sucursal da Inglaterra e assim, nessa fala sussurrada, driblam o tédio de viver sempre a mesma história. Olho para o volume em minhas mãos e folheio-o: uma frase grifada aqui, “Por que a teria marcado?”, uma página dobrada ali e, devorando os biscoitos engulo junto, palavras doces de um poema marcado, quase esquecido, o trecho de um conto triste ou alegre ou romântico, quem sabe erótico...

     Em surdina, muito lentamente, a luz do dia atravessa as frestas da janela e joga um reflexo cor de prata na escrivaninha me fazendo pensar em prata fatiada, em colares feitos da luz do sol, em um fresco copo de água do orvalho da manhã, em neblina nas montanhas...

     De repente uma mão quente me sacode de leve. Já é hora? É preciso mesmo despertar? Começar um dia novo de novo? A brusca quebra de meus devaneios me empurra para o vale da realidade e dele não consigo sair. Apoio os cotovelos nos joelhos e a cabeça sobre as mãos, suspiro fundo, exalando o sofrimento resignado dos que acabam de nascer. 
Célia Regina Marinangelo
12/03/2007