Ascendendo

Chamou o elevador. Era só cansaço e o final daquele turno prometia-lhe o melhor: a cama enorme, macia. Sonhava com o prêmio dos lençóis cheirando a limpo e ansiava por um sono bom; também pelo bolo que a faxineira deveria ter batido, pois a mais, para esse e outros mimos, concordara ele em pagar. Tinha direito!

Era de manhã. Seu turno encerrava-se às oito e ele ficava sempre mais um pouco, cerca de uma hora, arquitetando o futuro e medindo os pulsos do coração do capital. Com muito esforço e exatos contatos havia chegado lá. E dera muito trabalho armar o circo: o colega desistiu não só do cargo, também do emprego, e mudou-se para outra cidade, pequena, no interior. Sem ele no páreo e ninguém mais preparado para assumir: bingo! as portas do futuro se abriam no compasso das do elevador.

Na vida, pra subir, a gente desce, com elevadores nem sempre isso se dá. Queria o subsolo, mas alguém que viera de baixo e ali já não estava, apertara o botão de um andar mais alto que o seu. Cento e dez andares, ao todo, e ele estava quase a meio caminho do topo, no andar da firma. Elevador pequeno, andar fantasma, não havia viv’alma quando ele o tomou.

No circuito interno, versos de What a Wonderful World fizeram-no lembrar de 1968 quando, aos sete anos, ouviu-a pela primeira vez. De repente, a impressão de que o prédio balançara fê-lo voltar ao presente e esquecer de Armstrong. Devia ser o cansaço, pensou. Um relógio mostrava 09:03 e ele, atraído pela força dos dígitos, balançou a cabeça especulando a boa fração de vida a gastar ainda na Itália, às custas de duras escaladas em mais de vinte anos de corporação.

A promoção era merecida, estava certo, em seu dia-a-dia só havia trabalho, planos, cálculos, transações e Elisa, de quando em vez. “Ai, Elisa, tivesse você mais ambição ou fosse você mais sórdida...”

Perdido em pensamentos, esquecera-se das luzes que iam mostrando os progressos do ascensor, estava a um passo do destino desejado quando sentiu um solavanco, ouviu um estrondo e tudo parou de funcionar. Sem energia e comunicação, sem rede, sem nada. Tudo tentara para escapar daquela caixa mas certas coisas só dão certo em filmes de ação. E como contava carneiros em criança, quando não conseguia dormir, 50 minutos mais ou menos contou do tempo para fugir de estar no escuro e no silêncio, do pânico de estar consigo mesmo, tortura sem igual.

Tudo o que sobe, desce, e em poucos segundos a vida se esvai: “Elisa, querida, tenho tudo, tenho o mundo para dar, tudo pago, sou rico e pobre de amor; paraíso e putas, não tive, saudade, só de mãe, deixada, deixou-me o pai, e dói. Ai, Elisa que sonha com Lorca, tivesse eu você agora aqui... Compro, vendo, não dou nem troco, compro-compro, vendi-vendi, vi vendi e vendo: mais vale aquele que não se vende do que aquele que se dá. “La Aurora” e “las aguas podridas”, Elisa, ai, Elisa, jamais saberei, dinheiro, só dinheiro, trabalho, dinheiro, din-din, capital ganhei, dinheiro, na torre do mundo, dinheiro, nada herdei, dinhei-, capitalismo e moral, dinhei- calculo se Deus din-din... e perco! Hoje faço quarenta anos, setembro, quarenta anos de solidão. Estou cansado, estamos todos perdidos. Não fui imoral.”

“What a wonderful world!” foi seu último suspiro, a canção de Elisa, a que ela gostava mais.

Tivesse ele já não perdido os sentidos lembraria também da queda, do ferro, do pó e dos detritos, da torre e dos sonhos cobrindo-o, desabando, da tão desejada cama e dos limpos lençóis. Desejos de aniversário se realizam. Ele queria o subsolo e ansiava por um sono bom.

Nota: conto publicado originalmente no blog SEM VERGONHA DE CONTAR (semvergonhadecontar.blogspot.com)

Helena Frenzel
Enviado por Helena Frenzel em 31/03/2013
Código do texto: T4216970
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