Pra lá de Phnom Pehn...

Clicou aqui e ali, fechou todas as janelas; as da casa e as do computador... Aguardou o sinal sonoro. Parou por um instante na “tela de descanso”, e, por fim, já exausto da lida de outro inútil dia útil, encerrou o Programa Word, desativou a máquina.

Olhou-se no espelho pela última vez, lavou o rosto e dirigiu-se ao quarto de dormir. Apagou todas as luzes, ligou o velho transistor, abraçou o travesseiro e deixou-se embalar ao som de acordes de gaitas de fole, tambores da Escócia, e antigas guitarras de Liverpool.

Gregório adormecera ouvindo a canção “I’ll follow the sun”(2)... Sabe-se lá por que razão, foi parar em um lugar pra lá de Phnom Penh...

Era uma ilha desconhecida, um lugar paradisíaco habitado por um povo alegre e acolhedor; perfeito para que Gregório se despisse de todas as formalidades mundanas e abrisse o seu combalido coração, vítima de amores platônicos e de outros tantos não correspondidos.

Até que um dia, que tinha tudo para ser apenas mais um dia na vida, Gregório apaixona-se por Soraia...

Gregório, agora, mais motivado que nunca, faz planos, desfaz enganos, e, feliz, promete mundos e fundos, jura amor eterno...

Como o tempo não espera por ninguém, quando o bom Gregório acorda, o brilho da manhã já se refletia em janelas vitrificadas, atravessava cortinas de linho branco, projetava estranhas figuras pelo teto e por paredes silenciosas...

Partículas de pó equilibravam-se no nada, formavam assimétricos e equidistantes caminhos aéreos...

Gregório vai, pouco a pouco, tomando pé da realidade...Parece atordoado com tanta familiaridade;

o espelho, o relógio, a roupa de ontem, atirada sobre a antiga cadeira de vime, e, à cabeceira da cama, sobre o criado-mudo, além dos ainda inacabados "Cem Anos de Solidão"(3), um Manual atualizado da mais recente edição da “Nova Ortografia da Língua Portuguesa”(4) e um exemplar do sempre oportuno e indispensável “Minutos de Sabedoria (5)”.

Nos porta-retratos espalhados pela casa, instantâneos do século XX, lembranças de um passado recém-vivido, de um mundo logo ali...

Gregório, que sempre acreditou na imortalidade da esperança, consulta o Atlas Geográfico Mundial, e, ali, na página 67 aporta na Monarquia Constitucional do Camboja...

Gregório, entre uma assertiva e outra, costumava dizer: “os sonhos, assim como os pensamentos, são irmãos siameses da liberdade...”

E, com muita propriedade, alardeava aos quatro ventos que, para se criar um céu, bastava um sol, uma lua, uma estrela, e boa dose de fantasia...

Agora, Gregório abre todas as cortinas, permite que um bem vindo feixe de luz matinal invada o quarto, ilumine os primeiros passos do novo dia, convide-o a sair...

Gregório, então, vai escada abaixo, degrau por degrau, como se de pantufas holandesas pisasse em nuvens de algodão...

Já diante do pequeno almoço, vê-se refletido na xícara de café com leite... Passa uma fina camada de manteiga na fatia de pão integral, e, põe-se a mastigar longínquos devaneios ultramarinos...

Gregório nunca se sentira tão leve, tão livre, tão de bem consigo mesmo...

Mas, ainda havia uma quinta-feira. Era preciso apressar-se, paramentar-se de realidade...

Ao abrir a porta, “o sol”, como ontem e anteontem, entre grafites e pichações, já o aguardava refletido no muro da escola pública, do outro lado da rua...

FIM

Conto de Zizifraga

Reeditado em Maio de 2013.

Notas:

(1) Capital da Monarquia Constitucional do Camboja.

(2) Trad. Ing. Eu vou seguir o sol.

(3) Romance de Gabriel Garcia Marques.

(4) Assinado pelos países lusófonos, em efetivo vigor, a partir de janeiro de 2012.

(5) Obra de cunho filosófico e motivacional de autoria de Carlos Torres Pastorino.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 04/04/2013
Reeditado em 30/05/2013
Código do texto: T4223558
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