A Rua das Crianças ou ao Contrario?

Nasceu até grande, um pouquinho abaixo do peso, mas nada que levasse a preocupações. Parto normal e dois dias depois lá estava ele fora do hospital-maternidade vendo pela primeira vez a rua, mal sabendo o quanto ela seria em sua vida e em sua morte, o inocente parecia sorrir com sua boquinha banguela no meio do enxoval doado por alma caridosa aqueles que nem um podiam comprar.

Não houve berço, mas para que berço? Aqueles panos, trapos e pedaços de papelão eram o bastante para ele nesta época. Como chocalho tinha o barulho dos carros, como canto de ninar suas buzinas, como móbile todas aquelas nuvens e pombos e pardais passando e como se não bastasse tantas coisas boas havia ainda aquele leite ralo, avidamente sugado de seio esquálido apesar de jovem, jovem demais para ser mãe.

Colo tinha o tempo todo e sempre ouvindo aquela voz conhecida, protetora e nutridora em uma cantilena, que apesar de não compreendida era já sinal de presença, algo como “ajudem . . . filho . . . remédio . . . comida” repetido sempre e sempre repetido, só não gostava muito quando quase dormindo ao som das buzinas e da cantilena era sacudido, e ai chorava protestando, isto aumentava aquele balanço rude e fazia a cantilena mais alta, mais aguda ele parava para ouvir e lá se repetia tudo outra vez. Mas ao final eram bons aqueles tempos.

Começou a engatinhar, foi se erguendo e encontrando coleguinhas para suas brincadeira e como havia com o que brincar, muito espaço, um monte de pessoas passando, os carros coloridos, bonitos, brilhantes na luz forte do sol e até um laguinho para se mergulhar e “nadar” enquanto uns lavavam roupa e outros enfiavam a cabeça para ver se tiravam o álcool e a cola de sapateiro de dentro dela.

Descobriu como é bom ser poderoso e temido correndo atrás de pombos na praça e chutando os cachorros da rua, já aprendera que pedindo, puxando as pernas das calças das pessoas e suas saias, arranjava sempre e sozinho com o que matar sua fome, às vezes até dinheiro ganhava, mas na moita, escondidinho se não a mãe ou algum dos maiores tomavam dizendo -- vai querer grana pra que guri, sai fora – e lá se ia embora o que arranjava, mas eles eram maiores e se dava por feliz quando não levava um cascudo ainda por cima, tudo bem . . . vai ter forra, eu vou ficar forte também e ai veremos de quem é a grana ou quem fica com o que.

Os namorados da mãe eram legais, alguns gritavam com ele de madrugada – sai daqui moleque ou vai a luta, não ta vendo que tua mãe e eu estamos namorando – mas no outro dia já estava tudo bem, uns até lhe traziam balas, mariolas e coisas assim gostosas até cola. Ainda estava trocando os dentes quando cheirou a tal de cola, da primeira vez foi “brabo”, quase vomita de tanto enjôo, mas sabe, que até que foi legal depois? Sentiu como se sentia correndo atrás dos pombos, o mundo ficou mais colorido, o poder veio a flor da pele e era legal ver aqueles babacas todos cheios de merda passando apressados, uns olhavam com uma cara engraçada (todos eram engraçados), mas a maioria nem reparava nele e ele só rindo muito deles todos, não sabiam o que perdiam, mas ele sabia, pela primeira vez não teve medo dos caras maiores, não sentiu aquele aperto na barriga e parecia mesmo voar na altura dos prédios. A mãe? Bom ela deu um cascudinho nele, mas ela também cheirava e ainda fumava aquela coisa de cheiro engraçado, qual era a dela, só ela que se divertia? I . . . não estava com nada, a cola era dele e cheirava quanto queria. Bom naquele dia que vieram aqueles caras a noite gritando, segurando, empurrando, levando todo mundo para um micro-ônibus e depois para aquele prédio fedorento, é verdade que não correu devido a cola, “tava doidão”, mas fugir dali também era mole-mole e foi o que fez logo no dia seguinte. Ainda sentia arder a pele das esfregadas com bucha no banho, porra tomava banho no laguinho e com sabão as vezes, a máquina raspando a cabeça também foi ruim e aquele pó que teve de passar no corpo todo então? Cheiro ruim, deu até coceira, mas aprendeu uma coisa: pra lá não voltava, nunca mais iam pegar ele, era esperto e sabia se virar, não voltaria e pronto, aquele leite com pão que lhe deram não estava ruim, mas arrumava coxinha de galinha muito melhor sozinho e com suco. Só ficou triste por ter perdido contato com a mãe, a ela levaram pra outro lugar, ia descobrir onde era e ia buscar ela, ah! Vamos ver se não ia, se não descobria e tirava ela de lá fosse como fosse, afinal era esperto ou não era.

Foi a primeira vez que errou em sua vida, não encontrou mais a mãe e só depois de muito tempo soube que tinha morrido de uma doença da qual eles riam muito, diziam que se pegava ela fazendo “aquilo”, e aquilo lá deixava alguém doente? Só barriguda e engraçada, mas doente não. Também diziam que aqueles caras esquisitos, é eles adoravam injeção, também pegavam, mas a mãe só cheirava cola e fumava, não gostava de injeção. Bom mas isto não importa agora.

Tinha de se virar e a coisa estava cada vez mais difícil, era todo mundo de vidro do carro fechado no sinal, estava difícil de arrumar até um salgadinho besta, um pedaço de bolo, quando muito uma “média e pão na graxa” e a cola estava ficando mais cara também, sem ela já não se sentia mais o mesmo, era bom mesmo cheirar aquele treco. Ia à favela, é que lá tinha mais gente boa, arrumava um prato de comida e às vezes uma graninha fazendo um “avião”, mas os moleques de lá não davam mole não e tinha vezes que perdia tudo, quando pegavam ele fazendo “avião”, mas foi até encontrar “O Cara”, ele mesmo o gerentão da área, e ele convidou para fazer os “aviões” diretamente pra ele, com direito a salário, comissão e um canto para dormir com cama e tudo.

Daí pra frente foi só subida, começou a comprar roupas, primeiro na loja de lá mesmo, mas viu e aprendeu a comprar dos viciados, muito mais barato e coisa muito mais fina, até tênis de marca já tinha, quem diria . . . para quem só usava havaiana e quando usava, agora era um tal de Nike, Adidas, Rainha, só do melhor e apesar de não saber ler contas fazia e bem. Cresceu um verdadeiro sobrevivente, não sabia quantos anos tinha direito, mas já começava a ter barba, pelos nas axilas e até em outras partes também. A comida diária, o não cheirar mais cola (agora só fumava) e os novos amigos foram um premio e como ele conhecia dinheiro e bem, sabia o valor das notas, daí de “avião” à vapor foi só um pulo, era esperto, safo e corria bem mesmo quando preciso. Deram uma P-38 na mão dele, ensinaram a mexer nela e nem cobraram nada dele, era o mais novo vapor, com direito a salário maior, percentagem no tóxico vendido e principalmente respeito. Respeito era coisa que nunca tivera na vida, mesmo ali na favela continuava sendo um enjeitado, sem mão nem pai, sem parente nenhum, afora uma ou outra mãe de amigo que chamava de tia, mas agora era vapor e vapor em favela é pessoa popular, quem não dizia ao menos bom dia e boa noite a um vapor? As garotas então, aquelas que adoram bandido, pareciam até moscas, e tudo era festa mas tanto festava, que pela primeira vez precisou de mais dinheiro do que tinha, olha que nunca tinha visto tanto dinheiro junto em seu bolso, mas precisava de mais, dava presentes a todas (eram várias chegava a dar briga), se vestia e calçava com roupa de marca, mas agora eram novas, só comprava em loja da zona sul e oeste e a grana começou a ficar curta. Vender mais estava difícil já era dos que mais vendiam, por roubar do chefe já tinha visto muitos morrerem então nem pensar, tinha de arrumar outra forma de ganhar mais, mas como? A resposta veio juntamente com um antigo colega, recém saído do reformatório (pelo muro), que tinha umas idéias muito boas de como “pegar” carros de madame sem riscos e a quem vendê-los por um preço muito bom, era só uma questão de um “ferro” e isto ele já tinha o dele, não usava mais o da boca fazia já um tempo, então estava tudo resolvido, o amigo sabia dirigir e ele tinha a ferramenta, foi feita a sociedade.

No inicio foi fácil, pega lá dá cá e a grana voltou a ser suficiente mas com a continuação do processo, de garotas, correntes de ouro (compradas baratinhas é verdade), mais os presentes e demais despesas a grana começou a faltar outra vez e os carros passaram a ser de qualquer um, não só de mulheres mas de qualquer um, bastava ser do tipo, ano e marca da encomenda e estava feito o serviço fácil e rápido. Tão fácil que ficou desatento, tão rápido que começou a ficar nervoso se demorava a sair o motorista ou algum dos passageiros, gritava ameaçando, apontava a arma destravada e nem se preocupava mais em ver a sua volta, se tinha alguém prestando atenção, se os motoristas ou acompanhantes estavam sem armas, nada mais importava só entrar e levar, receber e voltar para pegar mais um. Cumpria seu turno na favela e saia correndo, afinal a nova atividade começava a dar dinheiro de verdade. Pensava até em alugar um apartamento (ele vivendo em apartamento, quem diria), colar com uma “pretinha” e mandar vir a vida.

Aquele dia era igual a qualquer outro em sua vida, acordou, jogou uma água no corpo e saiu para tomar café na tendinha e padaria perto de seu domicílio (era como chamava a casinha), foi depois a sede pegar sua primeira “carga” do dia e para o ponto vendê-la. Almoço era quentinha sem parar de vender e no cair da noite já tinha vendido quatro “cargas” quando foi rendido, voltou fez um lanche e foi direto a quadra da escola encontrar-se com o sócio, era hora boa de começar a batalha, muitos carros na rua, todo mundo cansado e sem vontade de reagir, mas principalmente hora de troca de turno no batalhão da PM, sabiam onde estavam os carros deles e que caminho faziam tanto ao voltar como ao sair e as áreas que estavam fora deste caminho. Tudo certo, tudo como sempre tranqüilo, menos aquele maldito cara atirando de uma janela de um prédio próximo ao sinal e aquela dor lacerante nas costas, a última coisa que pensou foi – logo agora que ia comprar um AP . . ..