PROBLEMAS CONJUGAIS
“É isso. Quando o que nos circunda se torna incerto, a ilusão de ter muitas "segundas escolhas", que nos recompensem do sofrimento da precariedade, é convidativa. Mover-se de um lugar ao outro (mais promissor, por ainda não ter sido experimentado) parece mais fácil e atraente do que se comprometer em um longo esforço de reparação das imperfeições da habitação atual, para transformá-la em uma verdadeira casa, e não só em um lugar para viver. O "amor exclusivo" quase nunca é isento de dores e problemas – mas a alegria está no esforço comum para superá-los. “
Zigmunt Bauman
 
 
 
            Paulo Brito herdou a boa voz para o rádio do pai, quando era criança escutava as transmissões esportivas e se deliciava com a forma bucólica como o pai transmitia as partidas de futebol, essa era a única lembrança que tinha do pai, um combativo comunista que morreu de um ataque cardíaco, herdou a cultura e a vontade de ler de sua mãe, uma cantora lírica, segundo conta a lenda, trabalhou em um filme com Oscarito.Leitor desinibido, atualmente estava as voltas com a extensa obra de Zigmunt Bauman, um sociólogo polonês que iniciou a sua carreira na universidade de Varsóvia e, atualmente, professor da universidade de Leeds, inglaterra.
                        Estudou jornalismo na capital, achou a universidade um lugar de lunáticos, esportistas e maconheiros, nunca o lugar do saber genuíno, perdido em um mundo sem regra ou direção, onde um aprendizado regado a orgias e cerveja.
                       O único amigo, por toda a vida, foi o professor de história Jorge Andrade, companheiro de bebedeira, interlocutor das horas vagas e bom jogador de xadrez,Jorge, apesar de todas opiniões firmes sobre assuntos polêmicos, inclusive sobre política , Jorge não enganava Paulo que sabia Jorge não gosta de ser reconhecido como  homossexual, que se escondia nas sombras de um mundo homofóbico .
                          Amigos a moda antiga, Jorge poderia ser considerado baixo, cabelos curtos e alinhado, seu visual lembrava o de um homem comum, usando um óculo retrô e camisas de listras largas horizontais, cabelos aparados obsessivamente, corte moderno, Jorge era um figura querida.
                        -Acho que falta um programa com gosto de verdade, esse seu programa veio preencher a lacuna, sabe, toda a imprensa parece poluída por um medo do governo, não o medo igual o medo que a gente sentia dos militares, o medo de perder o privilégio que o governo dá, ou que ele tira, e uma vontade louca de agradar ouvintes e telespectadores, não é?O único parâmetro é audiência, nos EUA, uma série de TV que perde a audiência perde a sua alma, cancelam quase imediatamente - disse Jorge, tomando um gole de cerveja, ele era espontâneo, falou parecendo um professor de história na sala de aula, não um amigo, isso irritava Paulo.
                        Eles estavam ali, não por uma coisa boa, não para festeja, como os três sempre faziam, mas pela separação entre Paulo e Maria Rita, pela  primeira vez Jorge sentou  num bar por esse motivo e efetivamente não conseguia relaxar.
                        -Desculpa Jorge, estou aqui sem cabeça, nem o terapeuta adiantou, vamos nos separar, pra falar a verdade acho que o terapeuta enterrou de vez a situação – ele contemporizou, usando as mãos para se revelar como o principal responsável pelo fiasco da terapia, fez o gesto da suplica juntando as duas mãos– sei que foi culpa minha, mas para quê um terapeuta?E aquela fita, o que foi aquilo?
                        -Foi ela que pediu, só fiz a minha parte. - Jorge ouviu o amigo se lamentar, mas teve duvida se a lamentação era sincera, para Jorge ficar com uma pessoa requeria admiração e respeito, Paulo, amava Maria Rita, mas tinha um comportamento que não demonstrava,um homem na maioria das vezes agressivo, dominador, ele tinha essa espécie de amor afetado e violento que alguns homens tem, extasiados pela beleza da mulher.
                         Jorge não quis tomar partido, indicou um terapeuta bom, Nelson Soares, para resolver o caso, mas parece que não deu certo, além disso, Nélson Fez o favor de morrer em plena terapia.
                        “Que Deus me perdoe” pensou Jorge, “nunca mais vou num terapeuta velho”.
                        Maria Rita e Paulo namoraram durante toda a infância e adolescência, ele sempre foi cobiçado por outras mulheres,mas mantinha um amor obsessivo pela pequena menina de olhos castanhos,que cresceu, para surpresa de muitos, agora trabalhava como promotora de justiça, vencera na vida, muito mais que os cálculos que Paulo fez para a sua vida, ela extrapolou, tinha poder, dinheiro e beleza, Jorge sabia que mulheres assim costumavam exigir mais dos parceiros,que se torne um vencedor, um passo além do que Paulo conseguiria ir, todos sabiam, que apesar de simpático, Paulo era um perdedor natural, um milagre, quem sabe?
                        Honesta, Reta, por isso um tanto enfadonha, com um senso de moral acima de qualquer suspeita, cobiçada por homens mais inteligentes e mais elegantes que Paulo, Maria Rita viu que sua única chance de viver melhor, a luz além do túnel, teria que se livrar de Paulo, o caminho seria o divórcio. Enquanto Paulo sonhava em fazer sucesso em um programa de rádio, quem sabe televisão, que tinha o nome ridículo; “Pensar o bem estar de hoje”, ela vivia em um mundo real, cheio de contas para pagar e uma obrigação da qual não podia fugir:
                        Uma dessas obrigações: Michele, filha do casal, que passou a ser, por sua vez, a obsessão de Maria Rita, queria para Michele tudo que não teve, bom marido, ótima carreira, mas a que escolher, não a que o pai a obrigou a fazer, tempo livre e uma vida na Europa, com um sujeito de sobrenome Gray, pensou Jorge, mas tentou afastar o pensamento nefasto e bandido que associava o comportamento da amiga ao romance campeão de vendas e quase que exclusivamente lido por mulheres.
                        Jorge amava os dois,eles foram seus amigos, seu apoio quando o namorado Fábio foi para Europa, Jorge desesperado tomou todos os comprimidos de insônia que tinha, de sua cabeceira, que não eram poucos e parou em um hospital, foi Paulo e Maria Rita que deram suporte e reergueram para a vida, até conhecer Lauro.Jorge estava feliz com o novo parceiro,mas o casal, Paulo e Maria Rita, se desintegrava, ele assistia. Faria tudo para ajudar a unir o casal.
                        -Ela quer que eu seja mais do que eu sou. - disse Paulo.
                        Jorge concordava com ela, mas não diria isso ali para Paulo, sem duvida o que o amigo fazia consistia de puro lazer, extravagante, dono de uma oratória sem par e com habito de ler tudo que é bom, fez sucesso na rádio no primeiro dia, passava nas manhãs o programa : “Pensar”, ouvindo as pessoas falaram sobre um tema que ele mesmo desenvolvia, um programa diário que foi um absoluto sucesso na cidade, mas Paulo recebia por ele pouco mais de dois mil, todo a despesa ficava por conta de Maria Rita, um casamento sem dinheiro é um casamento a beira do precipício, pensou Jorge, as pessoas precisam para viver de sexo e luxo o resto é besteira.
                        -Você não pensa em crescer? - falou  Jorge tomando outro gole da cerveja – assim, quero dizer, sair do rádio e ir trabalhar na TV, algo assim, escrever um livro, você é muito bom nisso, eu sou péssimo – disse Jorge, que sabia do talento do amigo para escrever, as vezes fugimos do nosso talento e procuramos outro, isso é triste, mas acontece com muitas pessoas, Jorge por exemplo, ótimo professor, mas escrevia poemas,vários poemas só que ninguém lia, quando a pessoa lia, fazia uma cara engraçada e dizia.
                        -Muito bom, gostei – mentira, povo se alimenta da mentira, a mentira cresce como fungo entre os dedos, sem remédio, já que os  poemas de Paulo escondidos em algum lugar eram maravilhosos, faziam as pessoas chorarem e o desgraçado nem fazia questão que alguém lesse.
                        -Você quer dizer que o que eu faço não tem importância, pois saiba que o que eu faço na rádio é pioneiro? - disse, esse era um dos problemas de Paulo, ele achava que tudo e todos estavam contra ele – que diferença faz se minha mulher estudou e ganha mais do que eu, isso não é um tipo de sexismo? Quantos homens não têm por ai que ganham mais que a mulher?
                        -O problema é que ela não quer, não está confortável – disse Jorge, mas Jorge achava que o problema não era esse, continuou a fala de forma nervosa, temendo que o que falasse tornasse o amigo mais triste – você finge que não se importa, todo mundo se importa o padeiro, o mecânico, a diretora da escola se importa, é besteira dizer que não ligamos para opinião dos outros, eu que o diga?Quantas pessoas não me excluem?
                        O grande absurdo daquele dia tinha dois culpados, Nelson por ter morrido e Paulo, por ter sido, tecnicamente, desprezível, pensou Jorge, Paulo foi curioso sucumbiu à vontade tremenda de descobrir segredos de quem amava e escutou a fita com depoimento da mulher, sobre ele, mas quem não faria isso?
                         Terapeuta não deve inventar moda, pensou Jorge, pois Nelson com suas inovações pediu que, separadamente, os dois falasse o que sentia e achava do outro em uma fita cassete, no final da terapia poderiam escutar,o problema é que a terapia não teve final.
                        Jorge pensou:” gente que triste”, pois Paulo falou durante duas horas consecutivas, foi o que ele havia dito a Jorge, disse tudo o que sentia pela mulher, amor, desejo, inveja, todos esses sentimentos juntos contribuíam para a montanha russa que era Paulo. Jorge ouviu o relato, naquele dia  preocupado, pois ao falar Paulo chorava compulsivamente, diga-se de passagem,desastroso ver um homem de quarenta anos, de um metro e oitenta chorar como uma criança bem na frente de uma banca de cachorro quente, que dia terrível!Pensou outra vez Jorge.
                        Quando o Terapeuta morreu a filha do terapeuta recolheu essas fitas para entregar aos donos.
             Nelson foi um homem de organização, guardou as fitas com nome e sobrenome, em um envelope lacrado, decididamente inviolável,pois  a proposta ,se não fosse a tragédia, seria ouvir essas fitas quando o próprio paciente a requisitasse em meio a terapia, ele mesmo não havia ouvido ainda, nem queria ouvir, mas Nelson morreu, contra a morte não temos uma terapia que funcione.
                        Ana Lucia, filha de Nelson, ao contrário, queria se livrar de tudo para poder vender a casa e consumir todo o dinheiro com cocaína, viciada, problemática, perturbada e com um pai terapeuta, a jovem compulsiva, mandou as fitas pelo correio, para o endereço de origem do casal, lá as fitas encontraram apenas o solitário Paulo, contra a tentação não tem remédio, diante de sua caixa de pandora, Paulo caiu.
                        Maria Rita, que havia saído de casa com a filha Michele, morava em uma casa alugada no centro, deixando o pequeno apartamento para Paulo, o que deixava deveras chateado, seu sonho sempre foi morar em uma casa e ter um cachorro e ela dizia que não, não podemos pagar, agora, morava confortavelmente em uma casa e tinha um labrador do tamanho de um rinoceronte, esse tipo de provocação machucava Paulo.
                        Ao receber os dois cassetes em envelopes, lacrados e devidamente nomeados, Paulo não se conteve, fez justiça de marido desesperado, abriu, e ouviu tudo depois ele ficou quatro horas chorando no banheiro.
                        -Você acha que ela vai demorar? - perguntou Paulo.
                        Ansiedade de Paulo devia ser considerada como um pedido de desculpas para a merda que tinha feito, no entanto funcionava mais como um tigre enjaulado querendo comer a própria cabeça, pensou Jorge, mas no momento era melhor mudar de assunto.
                        -Como vai o novo programa, parece que tem um tema novo? - disse Jorge – inflação, acho que a presidente Dilma, gosta dessa palavra: inflação, enriquecimento de industrias, mantendo os nossos salários congelados, os ministros deveriam trabalhar em aeroporto, eles entendem muito é de teto.
                        -Semana passada uma ouvinte detonou a Miriam Leitão,que ela faz  propaganda estatal de otimismo, a ouvinte disse que a mulher além de feia, nariguda, tem um problema com aquele cabelo dela é uma economista preocupada com a saúde bancos e grandes corporações. A vigarista fala de índices de seis por cento, agente sente no bolso cento e cinquenta por cento, os preços sobem e a gente finge que eles não sobem, deixamos de comer o que é bom, porque é assim que o governo controla a inflação, oferta e procura, você não quer que suba isso então não coma, o rico pode o rico come, são palavras dela, da ouvinte, que perversidade, eu até gosto do cabelo da Miriam – disse Paulo, visivelmente relaxado com a mudança de assunto, ele era realmente apaixonado pelo seu trabalho.
                        Jorge, entusiasmado com a mudança de assunto, jogou lenha na fogueira.
            -Pensa bem, um café expresso, dez reais no shopping, um negócio que custaria, com aluguel da loja e tudo no máximo quatro reais – disse Jorge rindo – então o governo pergunta: 'o que você está fazendo no shopping, está se divertindo, então tome? - riu e tomou um gole de cerveja achando que o gesto seria entendido como trocadilho– claro que o shopping não paga esse ágil de imposto, não é?Além disso,ir ao shopping é  diversão, podemos cortar a diversão e apenas trabalhar para manter a diversão de quem merece, em outra vida foi uma pessoa melhor – riu, mas sabia que a piada não agradava a Paulo, que respeitava todas as religiões - , se não sobrar mais nada, tenho a Igreja, que consome o resto do dinheiro que me sobra as custa de um paraíso qualquer depois  da  minha morte esfolado.
                        -Claro -disse Paulo adorando a conversa - pense em um suco de laranja, quinze reais!Não estou falando em um sugo bem feito, é aquele suco que a cara pega debaixo do balcão, já  está pronto, bate com gelo e diz que aquilo é suco natural, não ha mercado que acompanhe um raciocínio desses, a pessoa que está vendendo o suco, desculpe, suco merda nenhuma, lavagem cheia de conservantes, aquele cara que  atendente recebe menos de setecentos reais por mês, isso congelado pelo governo com reajuste controlado, muito bem controlado, da merda do salário mínimo, que de mínimo não tem mais nada, o farmacêutico amigo meu, ganhava três mínimos, agora ganha um e meio, justiça social é jogar a classe média brasileira na sarjeta, um projeto começado pelo Lula e que Dilma quer encerar – disse Paulo, um apaixonado pelo assunto.
                        Jorge ficou em silencio, depois completou.
            -Gostei do tema: ”Homofobia” - sabe que não gosto de falar no assunto, mas a abordagem, com gente falando contra e a favor, o pastor que disse que homossexual vai para o inferno, outro que disse que sexo Homossexual trazia doenças era coisa de gente desclassificada, ainda um que falou que é uma doença psiquiátrica, que um bom tratamento resolve – disse Jorge – não devemos discutir na realidade essas questões, homossexual nunca será aceita por uma sociedade isso é certo, como dois e dois são quatro e dai?A vida continua, nem todo gay deve portar uma bandeira e morrer por ela, às vezes quer apenas viver.
                        Paulo olhou nervosamente para o relógio mais uma vez e disse.
                        -Mas houve opiniões positivas, como a moça que disse: “como posso falar de uma realidade que não é a minha”, todos tem o direito de fazer da vida o que quiser, não é? - disse Paulo, mas Jorge sabia que estava sendo simpático, ninguém orientava o seu filho a escolher: ”olhe minha filha, você pode ser gay, é uma opção, o mundo já está cheio de pessoas, vivemos uma praga de gente, os heterossexuais falharam, agora é a nossa vez”, nada disso, nada de beijo gay, nada de abraço gay na frente das crianças, quando Michele perguntou ao pai quem era o tio Lauro para o tio Jorge, ele disse: ' Amigo,” Jorge pensou: Paulo me negando por três vezes.
                        -A maior idade Penal, esse tema eu gostei – disse Jorge – o ódio social está aumentando, agora querem prender os adolescentes, que viraram os vilões do crime, se um crime ocorre e existe punição para ele, então a nossa sociedade está satisfeita, trinta anos de cadeia, sai todo mundo feliz, então esse crime é mais admitido pela sociedade.O contrário se não existe punição, todo mundo se invoca, imprensa, políticos, rasga a roupa e sai gritando:”essas crianças malditas, assassinas, assassinas” ,o que importa, a punição ou discutir a situação que o crime ocorre?– disse Jorge levantando a mão para o garçom pedindo mais uma cerveja.
                        -A punição é que é o barato hoje em dia, vivemos a era da prisão e do poder legal, os juízes são intocáveis, cortam famílias no meio, derrubam contas correntes,eles estão acima da lei, ódio social contra o criminoso menores. Jorge? Amigo? Aquele programa ferveu, eles querem ver os adolescentes na cadeia, os adultos usando as crianças no crime, bobagem, quem comete crime não é mais criança – disse Paulo – não existe punição enquanto os grandes criminosos não forem para a cadeia, cento e cinquenta milhões para reformar o autódromo de São Paulo, para uma corrida no ano? Setenta por cento dos filmes e séries são sobre violência, jogos são sobre violência, tudo envolve violência, ”eu quero eu posso”, diz o rico, o pobre diz eu quero eu tomo, a ordem social é uma farsa, tudo fica por conta de falsos moralista, quem morre e quem mata, todos são vitimas de mundo sem rumo, todos fingem que tem uma ordem em algum lugar – disse Paulo se recostando na cadeira, olhou para as pessoas no bar, estavam ali para viver o momento, não se importavam com o mundo. O que Jorge sabia é que para viver aquele momento era preciso dinheiro.
                        Paulo calou.
            - Essa vontade de riqueza, alterou a mentalidade das pessoas, gerou mais violência.
            -Você quer dizer que quem trabalha e teve sucesso deveria dividir com quem não teve nem sucesso, nem trabalho, nem esforço? - Provocou Jorge.
                        Paulo bebeu um gole de sua cerveja.
            -Pode ser que o socialismo não seja mais plausível, que quando mais bobagem igualitária, pior as coisas ficam, mas ninguém se importa com o outro, vivemos em mundos pessoais “aconchegantes” onde protegemos os nossos, essa é a cultura da filosofia do Pondé. Falar o óbvio  não é filosofar- disse Paulo que não suportava o filosofo Luiz Filipe Pondé – Claro, no seu discurso, Pondé acha que a filosofia é um lugar de constatações, ver o que está ai, é nesse momento que ele se contradiz, quando fala que acredita em Deus, afinal ele precisa acreditar é professor de religião.
                        Jorge queria mudar de assunto novamente, estava muito chato falar do Pondé, ele gostava do filosofo, achava sóbrias as suas declarações, portanto queria fugir desses assuntos, passou a perguntar por Michele.
                        -Está lá com a mãe – disse Paulo – a filha nunca liga para o pai se a mãe estiver por perto – outro ressentimento de Paulo, fazia tudo pela filha, mas o amor pela mãe era maior.
                        Jorge olhou para o amigo, cabelos castanhos, alto, um metro e noventa, barba bem feita, um homem bonito, sempre usava ternos, preto, mesmo no calor, vivia alinhado e bem penteado, além do trabalho na rádio dava aulas na faculdade de comunicação, era amado pelos alunos, sabia que Paulo estava quase desabando proto para entrar no assunto delicado, era melhor fazer logo, ou teria um colapso.
                        -Sabe por que eu escutei a fita? - disse Paulo de forma agressiva, inclinando o corpo para frente, seu forte halito cruzou o de Jorge, quase como se fossem amantes.
                        -Por que você é um curioso, porque eu também sou curioso , porque o mundo é curioso , nem sei se escutaria – Jorge falava nervoso, havia ensaiando o que diria para o amigo procurando palavras sinceras - , porque a fita estava bem ali na sua frente – disse Jorge e completou – está certo, eu escutaria a maldita fita, mas o problema é que ela, a nossa Maria Rita, não escutaria.
                        -Então você acha que devo falar a verdade com ela? - disse Paulo.
                        -Não sei, acho e não acho – disse Jorge sem ter certeza – mas à decisão é sua, pode simplesmente entregar o envelope não dizer nada, ou dizer a verdade – colocou o copo de cerveja na mão e completou – para falar a verdade não sei, queria saber, mas não sei.
                        Maria Rita tinha seus defeitos, egoísta, típica mulher do século vinte, sua soberba era superior a de Júlio César, amava a verdade, ou a máxima cristã: “conheça a verdade e ela vos libertará”, mas a banda não tocava assim, Jorge conhecia as mentiras e medos da amiga, sofria da insegurança com relação ao marido galã, tinha uma furor técnico, aprendia tudo sobre algo, depois de horas de estudo, mas duvidava de sua inteligência em relação ao marido, tinha uma tendência depressiva e encerrava as discussões sem dá uma palavra final, simplesmente ficava muda.
                        Cursou direito e se formou, ela teve alguns empregos, sempre ganhou mais que Paulo e a sua grande inveja era o marido fazer da vida o que bem queria, a vida não era assim, tínhamos que engolir “sapos”, ser humilhados para crescer, Paulo, discordava, a vida era feita para ser vivida.
                        Odiava fazer o júri, detestava o trabalho, do titulo ela gostava: Promotora de Justiça, mas nunca imaginou que um promotor de justiça tivesse que trabalhar tanto, estudava , queria ser juíza, sempre um degrau acima, onde a escada dela ia terminar? Quem sabe, mas havia Michele, a menina quase não via a mãe, trabalhava, todo tempo, mas a vida moderna era assim, as crianças que queriam vir ao mundo achariam a mulher, mudada, executiva, uma babá para a semana e outra para o final de semana, uma mãe para amar a distancia, era pegar ou largar, um dia aquela criança poderia se vingar internando a velha executiva aposentada em um asilo, ou uma enfermeira para semana e uma enfermeira para o final de semana, pois a filha executiva não tinha tempo para cuidar da mãe idosa, afinal os homens já eram insensíveis, agora é a vez das mulheres.
                        -Paulo, porque você me quis aqui – disse Jorge – isso é uma coisa particular do casal...
                        -Não somos mais um casal, não fui eu que quis você aqui, foi ela, você é nosso único amigo, precisamos de uma opinião de fora – disse Paulo olhando nos olhos de Jorge – escuta Jorge, eu ferrei tudo, fiz o que não devia, mas e daí? Escutar a fita, tive curiosidade, se ela me ama, vai entender.
                        Jorge sabia que Paulo estava errado, por um lado e certo por outro.
                        -Ela te ama, ou te amou – disse Jorge – mas não vai entender, melhor saída para isso é mentir, se quiser ficar com ela você vai ter que respirar fundo e fazer igual a todo homem hetero que se preze: minta.
                        -Mentir – disse Paulo – cara eu não vou mentir, quero que ela me entenda, se ela não me entender, ela não me ama – Paulo deu o ultimo gole na cerveja, deve ter engolido um pouco de sua soberba e do seu orgulho juntos, pensou Jorge – além do mais ela não acreditaria, me conhece bem.
                        Ouviram os passos do salto alto, Maria Rita, estava saia e blusa social, mas tinha a fisionomia fechada que contrariava a sua beleza. Carregava uma pasta junto ao corpo, muitos papéis por cima da pasta o que escondiam o pescoço insinuante, Paulo sentiu o perfume da pessoa amada.
                        Jorge pensou, se gostasse de mulher, talvez fosse um rival do amigo.
                        Maria Rita Balançou a cabeça, um cumprimento quase militar de boas vinda, tão impessoal que fez os olhos de Paulo arder, sem palavras, aquele gesto enviava a mensagem de que estava com pressa.
                        Paulo entregou o envelope.
                        -Você escutou? - Maria Rita perguntou.
                        -Sim – ele foi sincero, não havia outra maneira, poderia mentir, mas todo planeta saberia pelo seu tom de voz, queria realmente mentir, mas não conseguiu.
                        -Isso era particular – disse Maria Rita destruindo a fita, de forma quase violenta, comparada a uma mulher de classe, pisoteou a fita  ali mesmo na frente deles, jogou de volta na mesa os restos mortais dela e, como uma leoa desprezando o resto da caça, saiu.
                        Jorge achou a reação exagerada, sem conter a curiosidade, ele perguntou.
                        -O que tinha na fita?O que ela falou de tão grave?
                        Paulo sentou na cadeira e levou a mão na cabeça.
                        -Nada. - passou as mãos no rosto – ela não disse uma palavra sobre mim.
 
 
FIM
 
“Sim, eu lhe fiz uma proposta de casamento e, nove dias depois do nosso primeiro encontro, ela aceitou. Mas foi necessário muito mais para fazer com que o nosso amor durasse e para fazê-lo crescer por 62 anos.”
 
Zygmunt Bauman
QUANDO PERGUNTADO SOBRE A ESPOSA,SE O SEU AMOR FOI INSTANTÂNEO.
 
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 15/04/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4242470
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