O PEQUENO SONHADOR

 
          Naquela manhã de 1º de janeiro de 2000, sob o sol escaldante do intenso verão alagoano, com os coqueiros a balançar no ritmo da brisa suave do verde Oceano Atlântico, algo marcaria a vida de uma pobre família. No céu, as aves sobrevoavam a colônia na melodia dos seus diversificados cantos, no horizonte a imagem dos pequenos barcos em busca dos pescados se distanciava cada vez mais dos olhares em terra firme. Um grito de dor e o choro vindos de uma simples cabana de taipa - no centro da vila de pescadores Águas Sagradas - anunciaram para o mundo a chegada de um sonhador.

          Dona Sebastiana, a parteira local, uma lânguida e respeitada mulher, que guardava em sua história, com orgulho, a quase totalidade dos partos da aldeia, gritou em alto e bom som para todos ouvirem: “é um menino, forte e saudável, Deus o abençoe”. Glória, a mãe da criança, senhora de quarenta anos com aparência de bem mais, sorria banguela com o choro de sua oitava cria que nascera com vida; três delas não tiveram a mesma sorte. As manchas de sol em todo o corpo da mulher, as rugas em seu rosto, a falta de quatro dentes incisivos (dois superiores e dois inferiores), os cabelos ressecados, sua magreza e palidez naturais eram marcas do sofrimento com o trabalho duro realizado desde a infância, quando aprendeu com seus pais a caçar caranguejo no mangue para ajudar no sustento da família.

          Enquanto o pai da criança, Marcos, um pescador dois anos mais velho que Glória, e tão acabado quanto ela na aparência, com exceção da musculatura adquirida no trabalho braçal com as redes, estava em alto-mar para garantir o sustento da mulher e de seus, agora, oito filhos, a matriarca da família cumpria sua função de batizar os herdeiros com os nomes que bem lhe entendia. Para não fugir à tradição, bem como a superstição que lhes traria sorte - por ser de origem pescadora - escolheu mais um apóstolo de Cristo; João, Tiago, Lucas e Mateus já foram homenageados, e os outros três filhos eram meninas (Maria, Madalena e Rute). Ainda faltavam oito discípulos, mas como uma boa católica, lembrou-se do fundador da Igreja. Ela ouviu o padre da cidade ao lado recordar do evangelista na missa do último domingo; afinal, não sabia ler para buscar esses nomes na Bíblia. Seu caçula, que nasceu com mais de 3kg, pele morena, cabelos negros e olhos castanhos, grandes e brilhantes se chamaria: Pedro.

          Glória aproveitou o ensejo da homenagem e fez uma prece para São Pedro enviar chuva por aqueles dias; o calor estava infernal, e em casa não tinham o luxo de um ventilador; condicionador de ar então, nem sabiam que existia. A criança já veio ao mundo sofrendo - inicialmente de calor - para depois encarar sua dura realidade. Desde o ventre materno a vida tolheu quaisquer perspectivas de sonhos para Pedro: seria filho de pobre, moraria num lugar esquecido pelo Estado, com pouco mais de um mês seria desmamado (a mãe perderia o leite por má nutrição); ainda, possuiria sete irmãos para dividir comida e a quase inexistente atenção dos pais. Esses eram analfabetos; por inocência, não incentivariam os estudos dos filhos, bem como os sonhos que fugissem dos hábitos locais, apenas o aperfeiçoamento do ofício de todos: a pesca.

          Em meio às adversidades, Pedro tivera uma infância feliz; cresceu rodeado de irmãos, de amigos (filhos dos outros pescadores); adorava jogar bola na areia da praia, de se banhar naquele lindo mar de águas tranqüilas, de observar os homens da aldeia se prepararem para a pescaria, de montar e soltar suas pipas coloridas, de correr contra o vento, de brincar na chuva. Como todas as crianças do lugar, seus pais não tinham condições de presenteá-lo com brinquedos, por isso tinha que improvisar com latas, garrafas, cascos de coco, palhas de coqueiro, pedaços de madeira, conchas de moluscos; mas nunca deixou de brincar, de se divertir, de viver, de sorrir e sonhar.

          O menino Pedro, desde cedo, adquiriu um hábito peculiar e diferente das demais crianças da vila: toda noite, atônito, observava a lua, as estrelas e os planetas a brilharem como vagalumes e se destacarem no céu; se encantava com a forma das constelações, mesmo sem saber o que era aquilo, e sonhava que um dia seria astronauta (como assistiu na televisão) para poder viajar na imensidão da galáxia. Imaginava que na lua morava São Jorge, e esse travava diariamente uma batalha com o dragão; afinal, há tempos ouvia dizerem isso. Queria ser príncipe para quando crescer ter seu próprio reino; nessa terra tudo seria perfeito, todos seriam felizes, não haveria sofrimento, as pessoas seriam boas, e ele poderia brincar para sempre. A noite de Pedro era a melhor parte do seu dia; seus sonhos começavam antes de deitar a cabeça no travesseiro improvisado com palha de coqueiro e fechar os olhos adormecidos. A pobre criança não imaginava que tão cedo uma tragédia mudaria sua vida.

          Na madrugada do dia 29 de junho de 2008, dia de São Pedro, o destino pregou uma peça com a família do menino. Como de costume, seguindo as fases da lua, os pescadores da vila saíram para o alto mar no dia anterior, antes do nascer do sol. Cinco pequenos e velhos barcos com 15 homens (3 em cada um), seus equipamentos de pesca (bússolas, rádios, redes, facas, querosene, isopores, lanças, iscas e isqueiros), algumas ferramentas, água e comida para poucos dias; não contavam com a mudança repentina do tempo, com a natureza que se voltaria contra eles. No segundo dia de pesca, o mar agitado e as nuvens negras anunciavam uma tempestade por vir; poucas horas depois, o céu parecia desmoronar em raios e trovões, o mar balançava os barcos com fúria e amedrontava os pescadores, os rádios não conseguiam se comunicar para pedir ajuda; naquele momento todos tiveram certeza que não voltariam para casa com vida. As ondas se agigantaram e o pequeno barco de Marcos foi engolido pelo tenebroso mar, que o levou - junto com seus dois filhos mais velhos (João e Tiago) - para a morada de Netuno. O Leviatã destroçou o barco; os pobres homens que estavam em busca do alimento da família foram transformados em comida de peixe, e seus corpos nunca foram encontrados. A tempestade passou; os demais barcos, mesmo danificados, voltaram à terra firme - no início da manhã - sem os pescados e equipamentos, levados pelo mar, assim como com a fatídica notícia da morte dos 3 colegas da mesma família.

          As crianças da vila, que acordavam cedo para fazer o trajeto da caminhada até a escola, a 10km do lugar, foram as primeiras a avistarem os barcos voltando, estranhando de imediato a falta de um deles. Logo, em coro, começaram a gritar: “estão chegando, os barcos voltaram, estão chegando”. As mães e os idosos, como de costume, saíram às portas para recepcionarem os heróis que mantinham a aldeia. Contudo, para surpresa de todos, a tristeza e o desespero cairia sobre Águas Sagradas. Observando a falta do barco de seu marido, o estado dos demais e o semblante de desolação dos sobreviventes, Dona Glória começou a gritar em desespero antes de cair desmaiada no chão: “meu marido, meus filhos, não pode ser... não, não, não... meu Deus, por que isso foi acontecer comigo?” Pedro, junto com seus outros cinco irmãos, correu chorando para amparar a mãe, sem ao menos entender o que estava acontecendo.

          O jovem, com apenas oito anos, vivenciou pela primeira vez o sentimento de perda, de desamparo; perdeu seu herói, sua proteção, seu exemplo, e não pode se despedir do mesmo. O “bença pai” e “Deus te abençoe”, na noite anterior à saída do barco, foram as última palavras que trocaram. Mesmo com o pouco afeto demonstrado, sabia que o amor reinava em meio às dificuldades daquela pobre família. Ainda, nunca mais veria seus irmãos João e Tiago; a família, antes com 10 pessoas, agora parecia pequena, vazia. Naquela noite, com os olhos vermelhos de tanto chorar, olhou para o céu e viu três novas estrelas; teve certeza que seu pai e irmãos estavam ali, felizes; Papai do Céu havia os levado para próximo Dele, e um dia os reencontraria, ficaria juntinho daquelas estrelas, e sua família formaria uma nova constelação. Pedro sorriu para o céu e voltou a sonhar.

          Dona Glória, nem pode se dá ao luxo de ter luto; com a ajuda dos filhos, teve que se virar para não faltar comida na mesa. Solidariamente, os pescadores de Águas Sagradas fizeram o que puderam para colaborar com a família de Pedro; a matriarca começou a fazer cocada e tapioca, enviando suas filhas para vendê-las na feira da cidade ao lado, aproveitando os dias de missa para trabalhar em frente à Igreja Católica, com a autorização do padre local. Seus filhos mais velhos seguiram o ofício do pai e passaram a ajudar os sobreviventes da pesca. O alimento de cada dia não faltou naquela casa; a tragédia serviu para comprovar o ditado que “muitas vezes é preciso alguém morrer para que outros aprendam a viver”. A família do menino Pedro sobreviveu e reaprendeu a viver; o sol voltou a iluminar aquele lugar; ele continuou sonhando.

          Quatro anos depois, já com doze anos de idade, a vila parecia pequena para Pedro, ele sentiu que deveria alçar vôos rumo a sonhos mais altos; a chegada do circo na cidade ao lado o fez fortalecer essa idéia. Na praça da cidade, a montagem do circo “Alegria” virou a grande atração local por semanas. Os palhaços, as dançarinas, os equilibristas, malabaristas, trapezistas, anões, o mágico, a mulher barbada, o homem que cuspia fogo e a cabra que latia dividiam as atenções e sorrisos das crianças; também dos adultos, que tiveram sua infância interrompida para trabalharem. O ingresso de R$ 5,00 também colaborava para que todos assistissem ao espetáculo, mas Pedro, sem sombra de dúvidas foi quem mais se encantou, a começar com o slogan do circo: “Venha sonhar conosco”. E nisso, o menino já era especialista.

          Para ganhar um dinheirinho, Pedro começou a engraxar sapatos na cidade - com a ajuda da mãe e irmãos mais velhos - mas todas as moedas recebidas eram convertidas em ingressos do circo. Em pouco mais de 3 semanas, já havia assistido a 10 apresentações; as falas e os números já estavam decorados e ritmados em sua mente; sonhou em ser mágico, em transformar tudo ao seu redor, em colorir a vida cinzenta da pobre vila onde morava, em comprar uma dentadura para sua mãe, em fazer a cabra parar de latir, pois tinha pena da bichinha. Pediu ao dono do circo para trabalhar com eles, para ensiná-lo seus truques; se ofereceu para ir embora junto à trupe quando eles partissem da cidade.

          Seu Cláudio, dono do circo e mágico, um senhor de aproximadamente 60 anos, 1,80 m, pele clara, olhos verdes, cabelos castanhos e barriga proeminente - com ternura - falou para ele:

--- Meu jovem, não posso fazer isso. Você ainda é uma criança, não pode vir conosco, tem família e uma vida pela frente; procure estudar que é mais futuro; a vida de circo não é tão fácil e perfeita quanto parece.

Triste, e com os olhos marejados de lágrimas, Pedro apenas disse:

--- Não queria ser pescador e morrer no má como meu pai, meus irmão. Queria ter uma vida diferente, conhecer muito lugá, fazer as pessoa ri como o sinhô.


          Pensativo, o homem respondeu:

--- Garoto, mas você pode fazer tudo isso, e não é obrigado a ser pescador. Estude, cresça e faça algo que goste. Procure ser feliz com as pequenas coisas e sorria todos os dias de sua vida, sejam eles bons ou ruins. O sorriso é um combustível para a alma, mente e espírito; faz muito bem para a gente.

--- E sonhar não custa nada; sonhe e busque torná-los realidade, por mais difíceis que pareçam. Quem sabe, quando nós voltarmos aqui, e você for maior de idade, possa trabalhar conosco. Agora vá embora que já é tarde.


          Pedro deu um largo sorriso, que transbordava sua alegria; a esperança de trabalhar um dia no circo e mudar de vida foi restaurada. Seu sonho não morreu, apenas foi adiado. Lembrou-se da cara pintada do palhaço, da dançarina com a calcinha rasgada, do coelho saindo da cartola do mágico, da cabra assustada com o público rindo do seu latido, da lona do circo remendada, da queda que o anão levou ao subir no picadeiro... Gargalhou e sonhou acordado; se imaginou fazendo parte daquela trupe e sendo aplaudido pelo “respeitável público” do circo Alegria.

          Às vésperas do Natal daquele mesmo ano, os barcos de pesca, que saíram ao mar há uma semana, voltaram fartos de pescados: eram peixes, ostras, camarões, lagostas e polvos, uma verdadeira fartura que encheu os vários isopores dos, agora, oito barcos. Parte do pescado seria consumida pelas famílias da vila, mas a grande maioria seria revendida para garantir a sobrevida de todos. Para comemorar o sucesso da pesca, à noite, organizaram um forrozinho; tinha fogueira, sanfona, zabumba, cachaça e muita comida. Enquanto os casais dançavam alegres, esquecendo a dureza da vida local, as crianças brincavam ao redor da fogueira montada para assar os peixes e iluminar a noite, já enluarada. Aquilo parecia um ritual de agradecimento a Deus e todos os santos quem garantiram a pesca; no momento, todos comemoraram, e a felicidade reinou em Águas Sagradas no Natal; a tragédia de outrora fora esquecida e apagada da memória daquela gente sofrida.

          Pedro já era um jovenzinho, faria treze anos no próximo 1 º de janeiro, e já começara a paquerar as meninas da aldeia. Observou com euforia a movimentação de todos na festa, imaginou que aquela felicidade poderia ser prolongada para sempre, pensou que aquele povo unido merecia uma vida melhor, sonhou que poderia mudar o destino deles.
Se afastando um pouco da festa, reflexivo, Pedro caminhou em direção ao mar. O uivado do vento - como um lobo a se comunicar com seus iguais – o cheiro forte da maresia, de peixe, do sal, os pequenos barcos ancorados, as cabanas de taipa, os altos coqueiros a balançar, o barulho das ondas do mar, as marcas dos seus pés na areia molhada da praia... tudo o fazia lembrar de seu pai e irmãos mortos na pescaria. Seus irmãos mais velhos já estavam se casando, sua mãe já teria o terceiro neto, a família havia aumentado e todos moravam no mesmo casebre. Desejou que eles estivessem juntos, comendo, bebendo e dançando com todos.


          O menino magrinho, pequeno, com a pele queimada do sol e a aparência de indefeso, com olhos grandes, vivos e brilhantes ergueu a cabeça para o lindo céu de dezembro para observar a imensa lua cheia a iluminar aquela noite feliz e as estrelas a brilharem como um pisca-pisca de árvore de natal. Sentiu saudades dos entes queridos, mas ao mesmo tempo um sentimento de felicidade preencheu seu pequeno peito. Teve vontade de correr, apressou seus passos, sentiu a areia entre seus pés, o mar tocando seu calcanhar e correu... Correu contra o vento, o sentiu tocar seu rosto, vivenciou liberdade, alegria, lembrou-se da infância ainda tão próxima, sonhou que se transformaria num falcão e voaria sobre a vila, que alcançaria o céu, as estrelas, que chegaria bem próximo de Deus. Pedro não imaginava que esse mesmo Deus o faria grande para seu povo, que a pequena vila de pescadores cresceria com seus esforços, que ele criaria uma cooperativa de pesca, que teria uma linda família, que seus sonhos se tornariam realidade. O pequeno sonhador não se tornaria mágico, mas conseguiria fazer malabarismo para que Águas Sagradas pudesse sorrir; e isso o tempo se encarregou de mostrar...

Fim!


(Imagem: Internet)


Robson Alves Costa
Enviado por Robson Alves Costa em 18/04/2013
Reeditado em 10/05/2013
Código do texto: T4247034
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