EU VI TERESA

Talvez a tarde não esteja propícia para este descanso, mas me bateu uma saudade. Sento aqui e pronto. Está decidido. Há quanto tempo não faço isto, não largo o corpo num banco de praça, não admiro o verde, não contemplo as crianças correndo, os pombos fazendo travessuras? Que gritaria, meus Deus, e ainda tem as buzinas, o ronco dos motores, a propaganda espalhafatosa dos ambulantes e o apito do guarda. E todos se acertam, como numa sinfonia louca, onde o maestro perdeu o rumo. Por que não vi isto antes? Sabem por quê? Porque fazia parte da loucura, com um viver estressante, responsabilidades, prazos a cumprir. E há uma campainha tilintando em meu cérebro, um zumbido de abelhas na cabeça e o tique-taque de um relógio, marcando o vai-e-vem dos anos. Por que não parei antes, muito antes, bem antes? Meus olhos já não registram o belo, não observam a mão do bebê a captar areia na pracinha. Onde mesmo perdi o poder de ver, fui fechando os olhos para os pormenores?
Teresa chegando, os cabelos longos, loiros, dançando com os passos cadenciados; traz o costumeiro livro na mão direita, bolsa no braço esquerdo, sorriso no rosto rosado pela subida, a blusa desbotada, a calça com costura torta, os sapatos rotos e alegria estampada. Teresa. Também deixei de te ver, de te cuidar, de te amar. Teresa sentando no banco, o mesmo de sempre. Teresa não perdeu o jeito. Gosta de sentar ali. Primeiro olha ao redor. Observa as crianças, os cães, o homem fumando, a idosa de pernas cansadas, a algazarra dos pássaros, o menino com estilingue, a mamãe puxando discretamente um seio. Teresa sorri, perde o olhar nas poucas nuvens, desliza para a sombra das árvores e depois para o livro. Abre-o, ainda um pouco distraída. Depois, mergulha na leitura. No rosto, percebo o quanto aprecia a história. Teresa lê, Teresa vibra, Teresa ama, Teresa vive. Teresa vem sempre à praça. Trabalha próximo, aproveita o intervalo do almoço para ler. E cada dia é outro livro. A não ser, é claro, quando precisa estudar. E estuda ali mesmo, no mesmo banco, com o mesmo sorriso, depois de olhar ao redor, admirar o céu, as árvores, as crianças, como num ritual. Já sei, vocês pensam, vendo-a com o sorriso, tranquila, que Teresa não tem problemas. Tem. E muitos. Observem a cicatriz no ombro direito, um pouco para trás, isto, bem aqui. Viram? Pois ainda dói. Não a dor física, que cura com remédio, não. Dói é no sentimento, bem fundo, onde bálsamo algum conseguiu chegar.
Teresa trabalhou o dia inteirinho, estudou à noite, chegou à casa muito tarde, porque o ônibus passou cheio e deixou-a na parada, com frio, fome e medo. Muito medo. A mãe ficara no hospital, com o filho mais moço. O bebê sofria crises de asma. Teresa encontrou comida nas panelas. Juntou arroz, feijão, um fiapo de carne e couve refogado. Aqueceu tudo e sentou-se para comer. O padrasto entrou na cozinha, só de cueca, e deu um chute na panela. Teresa gritou e levantou-se, pronta para fugir. Vagabunda, disse o homem, isto é hora? Não pensa que vou acreditar que vens de colégio. Sei qual é o teu colégio. Mas acho que foi pouco. Guardei mais para completar, sua puta, desgraçada. E avançou sobre ela, já sem a peça íntima, derrubando-a no chão. Teresa era franzina, Teresa era assustada, Teresa temia o homem, Teresa lutou o que pôde. Quando, finalmente, conseguiu se livrar do sujeito, correu. Mas antes de chegar à porta, o vagabundo esfaqueou-lhe o ombro. Mas o que mais doeu, o que a feriu de verdade, foi, mais tarde, a mãe preferir não perder o homem e escorraçar a filha. Isto sim, doeu muito. E ainda dói, bem aqui, ó. Ficou órfã mais uma vez. Perdeu o interesse pelas coisas, pelo estudo, pelos irmãos, pela vida. Perambulou por casas onde não encontrou abrigo. Desaprendeu a conviver. A solidão, sim, foi companheira inseparável. Mas era jovem, reergueu-se, e foi à luta, batalhou o quanto pôde, dilacerou-se mais um pouco, mas venceu.
Teresa, querida, por que te perdi? Em que labirintos andei, em que curvas fui rompendo o fio? A saudade vai batendo, insistindo, pregando peças. Tenho vontade de te abraçar, acariciar teu rosto, derramar as lágrimas que ficaram presas. Mas posso? Não, não. A distância tornou-se irrecuperável. Somos duas estranhas, vidas paralelas, caminhos sem volta. A quem culpar? A mim, sem dúvida, a mim. Falar dos porquês agora não adianta nada, nada resolveria. E choro. Choro sem pejo, sem medo, sem revolta. Mas me vem uma ideia. É tênue e vou segurando com mãos trêmulas. Posso tentar, o que tenho a perder? Teresa, não fuja. Não. Não me dê as costas, olhe para mim, olhe para mim, não me reconheces? São os cabelos brancos que te assustam? Mudei, sei disto. Mas sou eu, olhe, sou eu. Volte, por favor, volte. Não me deixe. Teresa.
— Senhora, cuidado, a bengala...
— Ajuda-me, preciso alcançar a moça, preciso dela. Depressa, segure-a. Não deixe que se vá, por favor. Corra, segure-a.
— Que moça? Não há ninguém mais aqui. Está anoitecendo. A senhora talvez tenha adormecido e sonhado. Venha, estou com a viatura ali. Vou levá-la pra casa. Não chore. Qual é o seu nome?
— Teresa.






 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 01/05/2013
Reeditado em 04/05/2013
Código do texto: T4269568
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