O Preço Que Se Paga

As ruas, habitadas por aquelas figuras da noite, exibindo corpos e memórias maltratadas. Um corpo pode valer desde alguns míseros trocados, até algum entorpecente, que venha a aliviar a angústia de passados dilacerados. São mulheres envelhecidas pelo castigo da vida, meninas tornadas mulheres à força, meninos que vivem papel de meninas, e por fim, meninos, com seus rostos infantis e embrutecimento fálico. Está tudo ali, em alguma das tantas esquinas, seja de grandes, pequenas ou médias metrópoles. Os traficantes disputam o espaço, oferecendo seu produto, que alimenta o corpo em desespero, que precisa desse êxtase diário.

Os fiéis se enfileiram, vomitando preces, despejando suas dores nos sacerdotes. Os oficiantes clericais vendem sua ajuda, bebendo cada gota do salário santificado, que custa o suor em forma de sangue, de famílias famintas de alimento e cheias de esperança. Os altares estão repletos, com todos os seus adornos, enchendo os olhos dos curiosos e os bolsos dos gananciosos. Existem ainda os santos surrados, o cristo despido, ainda que a sua cruz seja adornada de ouro. Quem sabe rubis ou diamantes. A bebida é oferecida, como um sangue satisfatório. O vinho inunda a goela desses demagogos, deixando as cordas vocais impecáveis, para que possam proferir seus confortos e conduzir o dócil rebanho. Ovelhinhas de lã preciosa, que se oferecem para o sacrifício, com aquele egoísmo interior, de alcançar as graças maiores, pós-vida.

Matilhas de trabalhadores lotam os transportes coletivos. As massas operárias alimentam o apetite dos abutres do capital. Essa rapinagem financeira promove holocaustos constantes. O comércio prolifera o desejo de ter, que os pobres insistem em satisfazer, ainda que em menor proporção. Os grandes jogos acendem as disputas pela sorte. Roletas giram, sejam esperando as bolas pararem ou fazendo as cápsulas dos projéteis, receberem a pancada que irá disparar o próximo tiro. A vida gira sob o olhar da criança que mendiga nos semáforos, com sua pedrinha de crack, que é o brinquedo dos desafortunados. Ao lado de carros luxuosos e rostos indiferentes. Compra-se, vende-se, deixa de fazer sentido. Amuletos garantem o sucesso, sendo que a vitória costuma não se ausentar quando o prêmio é o desassossego. Os roubos são a tentativa de restituição. As coisas tendem a voltar, de uma forma ou de outra, sendo que a última beneficiária, costuma ser a terra.

Nas escolas os animaizinhos são adestrados. Dois mais dois é igual a quatro, se acertar ganha uma nota, fazendo o olho brilhar, feito o rabo que abana de satisfação com o prêmio. Os novos sofistas servem aos educandos. Mais volume para as guerras, que a cada dia estão mais constantes. Exércitos de maltrapilhos vagam pelas avenidas, feito espectros malignos, prontos a trazerem para sua dimensão fúnebre, os que vivem a ilusão da sociedade perfeita, apesar de todas as mazelas que nos agridem os olhos frequentemente. Nos disfarçamos, com máscaras de uma argila fétida, que derrete e trinca com a menor das intempéries, fazendo com que precisemos de novas fórmulas para conservar essa face que nos esconde e tenta proteger de nossa própria consciência, servindo de barreira ao livre pensador. O mundo desaba dentro do sujeito, fazendo com que apareçam seres militantes.

No acerto de contas da vida, podemos ser arrebatados a qualquer momento. Em uma noite qualquer, quando pessoas transitam em pontos entediantes. Como locais de embarque e desembarque, que apesar das despedidas e reencontros, parecem estar relegados ao tédio das informações de trânsito, tarifa, cifra. Rostos cansados de espera, com a perspectiva de um deslocamento melancólico. Quase se percebe um silêncio, que a monotonia faz existir, mesmo diante de sonoridades. Pequenos estrondos, reconhecidos como disparos, alertam a atenção do rebanho acuado, que sentem as fissuras em suas máscaras. O primeiro passo é o pânico que alerta, posteriormente chega a curiosidade que quase alegra. Os boatos voam, os pés aceleram. Na calçada, uma pessoa, sem nome, apenas um corpo baleado, que fala através do sangue que lhe escorre dos lábios. Mais números, discados, alarmados. Polícia, resgate. Tudo isso é de uma utilidade tão inútil. Alguém viu. Sempre alguém vê. A conclusão é fatal, acerto de contas. Quem não acerta dívida de droga, paga com a própria vida. As pessoas ficam chocadas, no primeiro momento. Não todas. Mas logo voltam a sua rotina, de máscaras, que as impede de pensar a respeito. Eis a sociedade perfeita. Ninguém é responsável por ninguém, por nada. Estão todos limpos, castos, puros. A sujeira é absorvida pela terra, que serve de grande tapete para nossa mesquinharia.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 09/05/2013
Código do texto: T4282672
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