O TOC do meu amigo Midas...

O meu amigo Midas reciclava palavras, inventava enredos, e, como era dono do destino de seus personagens, invariavelmente, escrevia-lhes finais felizes. O meu amigo Midas dizia-se um dos últimos românticos de um mundo pontocom, um autêntico caçador de metáforas e de outras figuras de linguagem...

Todavia, como qualquer ser humano convencional, Midas também tinha lá as suas esquisitices, algumas delas, a bem da verdade, um tanto patológicas:

Às vezes, Midas conversava consigo mesmo, discutia com os seus pacatos botões... dava ordens ao vento, esbravejava com a chuva, revelava segredos de infância e de adolescência às paredes, às estrelas, ao sol, à lua, aos bem-te-vis, aos helicópteros e aos rouxinóis...

Midas também não saía de casa sem antes despedir-se do botijão de gás, do calendário na parede, do carrinho de feira, da batedeira e da geladeira. E, como se tudo isso não bastasse, Midas ainda deixava-se levar por longínquos devaneios matinais, olhando fixamente para o vazio da parede, como se ali estivesse o que só a ele, Midas, era dado ver...

Midas também fazia intermináveis recomendações às irriquietas e incansáveis formigas, que, à procura de uma migalha, de um grão de arroz, ou, de um “porto seguro”, perambulavam sobre a mesa e a pia, e, não raro, pelas paredes, pelo teto e pelo chão...

Não satisfeito, Midas ainda conversava com os minúsculos aracnídeos que povoavam os cantos esquecidos da casa.

Midas também não abria mão de um pequeno e surrado caderno brochura, onde fazia as suas mais secretas anotações. Em seguida, guardava-o a sete chaves como se ali estivesse o último segredo de Fátima, aquele que, até então, nenhum papa ousara revelar...

Midas sabia que alguma coisa estava fora de lugar, era preciso procurar ajuda. Logo, Midas lembrou-se de consultar o sempre atento e bem humorado Dr. Ferrúcio, neurologista de mão cheia, a quem Midas, carinhosamente, chamava, “o meu personal neuro”, e a quem, talvez por timidez, jamais revelara tais fatos...

Mas, desta vez, Midas abriria o seu coração, e contaria tudo tim tim por tim tim ao estimado Dr. Ferrúcio, enfim. Midas iria revelar-lhe a senha da sua alma...

Até que, finalmente, é chegado o dia da tão aguardada consulta. Depois de ouvi-lo, auscultá-lo, medir-lhe a pressão arterial, tomar-lhe a pulsação, e, com um martelinho bater-lhe no joelho e no antebraço, o Dr. Ferrúcio verifica atentamente a sua Iris, a dentição e a língua. Olhando, então, fixamente nos olhos de Midas, Dr. Ferrúcio dá o seu abalizado diagnóstico:

- Pois é, Midas, não resta a menor dúvida, você está com TOC.

- Que coincidência, doutor. Hoje li algo sobre o Toque de Midas, o meu homônimo, aquele que, na mitologia grega, transformava tudo em ouro.

- Mas o seu TOC, Midas, nada tem de mitológico, e sim de patológico.

O seu TOC é o Transtorno Obsessivo Compulsivo. Muito comum nos dias de hoje.

- E eu pensei que tudo não passasse de alguma coisa sem maiores consequências, cheguei até mesmo a suspeitar se tudo isso não seria apenas superstição...

- Antes fosse, meu bom Midas, antes fosse; se bem que... para muitos, superstição, quando sem controle. também deva ser considerada uma anomalia.

- E isso é grave, doutor!?”

- Bem, Midas, eu diria que no estágio atual, já requer alguns cuidados. E para que tudo não piore, você deverá seguir o tratamento à risca, tomar os medicamentos prescritos, e, sobretudo, ouvir a voz da razão, e esforçar-se para descobrir qual dos seus alter egos anda meio confuso...”

- Como assim, alter egos, doutor ?”

- Quero dizer, qual dos seus “outros eus” precisa de ajuda.

- Outros eus, doutor !?

Exatamente, Midas. Nós somos vários em um só corpo, e, por essa razão, costumamos deixar que o alter ego que julgamos ser o mais equilibrado, seja aquele que, em determinado momento, fale por nós...

Quantas e quantas vezes, você não se surpreendeu e, certamente disse, aquele ali nem parecia ter sido eu...

Mas, não se preocupe, amigo, que logo você estará bem...

(...) Afinal, Midas, você não vai precisar do seu TOC para transformar o que quer que seja em ouro, você só vai precisar de um pouco de bom senso, paz interior e equilíbrio emocional para transformar essa angústia momentânea em felicidade plena, e voltar a sorrir para a vida...

E isso, meu bom Midas, não há ouro algum capaz de comprar...

FIM

(*) (Mitologia Grega) Homônimo do Rei de Phrygia, a quem Dionísio deu o poder de transformar tudo que tocava em ouro. Incapaz de beber e de comer, ele implorou para se libertar daquele poder, e foi instruído a banhar-se no Rio Pactodus, que, desde então, tem ouro em suas areias.

Conto de Zizifraga

Reeditado em Março de 2013.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 17/05/2013
Reeditado em 20/05/2013
Código do texto: T4295757
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