Redoma d'água
O casaco pesava cada vez mais sobre ele à medida que a chuva o molhava, e a visão ia se borrando conforme as gotas pousavam sobre o óculos, separando-o do mundo.
Ele saíra para arejar a cabeça, para ver os zés e as marias. Saíra pra ver a vida, mas a chuva sabia que não era disso que ele precisava.
Quando decidira que já bastava de solidão, fitas, controle e nanquim, pensara que a rua mostraria a ele que depois daquela moça bonita partir a vida continua, e o fazia fora de seu apartamento; então, foi atrás da dita cuja.
Assistindo àquele lastimável show de autodestruição, lá do céu a chuva resolveu ajudá-lo. Cobriu-o com uma redoma de água e sussurrou “vai pra casa” em seus ouvidos, porque sabia que daquilo que ele sofria se tratava de dentro pra fora.
“Vai pra casa”, ela insistiu. Se continuasse a resistir, era capaz de a redoma se quebrar e a realidade tocar na ferida há tanto aberta. “Incrível como a tristeza cega essa gente! Vai pra casa, rapaz, e se resolve lá, que o moinho daqui de fora não vai te ajudar”.
Ele olhou pro céu e respondeu “É melhor eu ir buscar um guarda-chuva”.