Cris!

- Cris, Cris... Sabrina tá queimando de febre. Desce criatura, senão tua filha morre.

Cristiane trabalha - há nove anos - do lado de casa. Mas a situação reporta, por tabela, às contradições do cotidiano: ela mora num casebre duma comunidade que fica ao lado duma alameda de prédios luxuosos (assunto para outra ocasião). Quem grita do pé do paredão é sua vizinha de barraco. Que passa o olho na menina enquanto a mãe não chega.

- Tá com quanto, Zoraide? Pergunta assustada da sacada de um dos apartamentos do Mansão Le Plaisier.

- Se esse troço (o termômetro) num tiver errado ta com quarenta e dois. Corre pra levar a bichinha no médico, antes que escureça, Cristiane... - Apela aos berros a amiga, batendo com a palma das mãos nas coxas, sinalizando desespero.

- Alô. Dona Dirce...? preciso sair um pouco, que minha filha ta queimando de febre... Fala aos prantos para a patroa.

- Aonde a senhora achou a chave do telefone, dona Cristiane? Andou mexendo no meu closet...? Claro. Foi lá que guardei a chave. À noite a gente conversa. Dispara a geladeira, que atende por doutora Dirce.

A patroa é uma mulher influente, empresária bem sucedida, mas de pouquíssimos amigos. É do tipo que vê o outro, mesmo que da sua classe social, como oportunistas - ainda que seja parente. Que só quer se aproximar para tirar algum proveito. E com isso se distancia. Tornando-se fria com as pessoas. Até tinha em casa outras duas empregadas, Inês e Serena, mas a ruindade flagrou-as tirando um cochilo durante o expediente, demitindo-as imediatamente. E jamais contratou substitutas. Mantendo apenas Cristiane – que se acaba no duplex de 300 metros quadrados.

- Dona Dirce a senhora me ouviu?  Pergunta, humilde, a moça.

- Claro. Mas não vai ser possível. Tenho um jantar de negócio e preciso de você aí. E não me torre que minha enxaqueca está me matando. Sentencia a geladeira, desligando o telefone.

- Zoraide, Zoraide... baixou? Berra voltando, tremula, à sacada.

- Que nada! Ela tá estranha... Desce Cris, pelo amor de Deus. Implora a amiga, de entre um grupo de vizinhos que saiu do pequeno casebre, que fora levado pela curiosidade provocada pelo diálogo apavorante entre as duas mulheres.

Cris retorna ao interior do apartamento, pára diante do telefone e, banhada em lágrimas, e tremendo ainda mais, contempla o aparelho. Na sua cabeça o martírio da decisão que pode lhe custar o emprego de onde tira o sustento da filha. Abandonada que foi pelo pai. Ela está imaginando se avisa ou não a geladeira, quer dizer, à patroa, que vai desobedecê-la. Pois precisa socorrer a filha. Mas, sem coragem de ligar novamente e ouvir a frieza da mulher, se afasta. E começa a andar pela residência, de quarto à cozinha, de cima a baixo, como que buscando forças para agir. Mas, um tempo depois, o instinto materno fala mais alto:

- Ah. Que se dane. Sussurra tirando o uniforme, e jogando-o no sofá. Sai, e desce o elevador dando pulos incessantes como se isso fizesse o equipamento descer mais rápido. Corre passando sem se despedir, como nunca fez, de seu Casimiro, o porteiro, outra vítima da indiferença humilhante da barona.

- Cadê, Zoraide...? Ô meu bebê... VIXE mulher... que quentura é essa, pelo amor de Deus ...? Fala carregando a garota e saindo desesperada porta afora.

- Então doutor? Pergunta, quinze minutos depois de deixar a criança aos cuidados dos médicos.

- Sinto muito, mãe. A senhora perdeu sua filha. Ela já chegou sem sinais vitais. Se um pouco mais rápido, poderíamos tê-la salvo, talvez. Disse o médico à Cristiane, que virava os olhos, caindo desfalecida no chão do imundo corredor hospitalar, diante das pessoas que choravam por presenciarem cena de tamanha tristeza.

Diante do contador, três dias depois, Cristiane tentava entender como aquele sujeito suportava por tanto tempo uma pessoa como dona geladeira, quer dizer, doutora Dirce. Mas logo compreendeu.

- Aqui está. Aí tem seu décimo, as nove férias vencidas, aviso indenizado - que dona Dirce ta chateada com a senhora por ter abandonado a casa dela e não lhe quer por lá - o saldo de salário, tudo. Disse frio, tal e qual a cliente, o contador.

- Ah ta, ela queria que eu ficasse por causa da droga do jantar dela. E minha filha, que acabou morrendo? Questionou, com lágrimas nos olhos, a pobre criatura, ainda com o coração dilacerado.

- Você abandonou a casa, e há de convir que o que você fez foi muito grave - deixando doutora Dirce com seus convidados se virando sozinha para serví-los. Eu tenho cliente aqui, que numa situação dessas te dava era uma justa-causa. Você teve sorte. Vomitou o freezer, que atende por Romivaldo.

- Não é possível. O senhor está enganado, doutor Shimith. Precisamos repetir esses exames. Eu não tenho histórico na família. Terminantemente me recuso a aceitar uma coisa dessas. Disparou arrogante, a mulher, diante do seu médico.

- Doutora Dirce... eu já tenho 50 anos de oncologia...  jamais errei um diagnóstico. Seu cérebro tem sim um tumor maligno, e dos mais violentos. Aceite a realidade que não pode se livrar dela. Assim a senhora sofre menos. Olha, o câncer ainda vai demorar um tempo para desenvolver. Assim, se a senhora não entrar em pânico, enquanto fazemos o tratamento para minimizar os sintomas, vai aproveitar melhor o tempo de vida que lhe resta. Cacetou o médico.

- Vem cá menina. Quem é aquela, de andador, levada por seu Casimiro? Pergunta de umas das janelas de um dos luxuosos apartamentos do Le Plaisier, uma mulher a sua empregada.

- É a doutra Dirce, dona Risoleta. Responde a garota.

Magra daquele jeito? Contesta a mulher.

- É ela mesma. Dizem que tá com câncer. Seu Casimiro disse que passa a noite todinha gritando de dor, informou a jovem.

- Ó... coitada... por isso que ela sumiu. Pensei até que estivesse viajando. Como que isso foi acontecer com uma mulher tão boa como a Dirce...?! Lamenta, se voltando contra a moça:

- Niguem lhe perguntou nada, sua muleca inxirida... Suma daqui. Coisa feia: fica fofocando a vida dos outros com o desocupado do porteiro. Vá já esfregar as janelas. Ataca a anciã.

- Ôxi dona Risoleta... Reclama a menina, se distanciando.

- Ôxi nada. Ande. E me traga meu remédio antes que essa tosse me mate. Grita a velha, se dirigindo novamente à janela.

- Amigo, pode ajudar aqui? É que falta um para levar o caixão. E o pastor não pode. Aborda um estranho, o contador Romilvaldo.

- E cadê o resto? Pergunta o homem, olhando para os lados.

- Estão ali. Diz o contador, apontando para umas pessoas, encostadas numa mureta, à meia-distância.

- São da família? Indaga o homem.

- Sim. Responde meio sem jeito, o contador.

Antes do seu discurso o sacerdote se dirige ao pequeno grupo perguntando quem dos presentes vai dizer as últimas palavras à ente-querida (glup) que parte.

- Eu. Se manifesta dona Risoleta.

- Pois bem... induz o orador.

- Dirce, querida, não tenho muito a dizer. Só que lamento muito sua partida. E peço aos deuses que lhe carregue a leve alma (glup), aos pés do altar. Sei que demorarei, mas é certo que longe que esteja esse dia, hei de lhe encontrar. Resmungou, na primeira-pessoa do singular, a arrogante criatura, como se ali não estivesse mais ninguém.

E o pastor, estranhando a ‘oração’ interfere:

- A senhora não incluiu seus outros parentes nas suas palavras...

E ela, altiva, e "inocente" da sua arrogância, sorri e solta:

- Oh, não... esse aqui é o contador dela - homem muito bom, pelo que Dirce falava; esse outro é só o porteiro do nosso prédio, seu Casimiro; essas duas são ex-empregadas dela, a Inês, e a Serena. E essa aqui foi a última serviçal, que eu nem sei por que veio, a irresponsável da Cristiane.

E, diante do apavorado orador, disparou a tossir...
Antonio Franco Nogueira
Enviado por Antonio Franco Nogueira em 31/05/2013
Reeditado em 20/02/2017
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