NOTA MAXIMA

        Os dias passam e me lembro daquela conversa, pode ser uma lembrança triste, melancólica, mesmo assim eu gosto da historia. É uma sensação agradável ficar sentado ali olhando a minha filha procurando ser a melhor da turma para me impressionar e eu de alguma forma gostando disso, estimulando.  Assim eu crio o vinculo com minha filha a amarra que nunca mais se solta e tudo isso me faz lembrar meu velho e querido pai naquele dezembro de 86.

        -Pai, eu não tirei nota máxima – disse minha filha no começo da tarde, quando fui busca-la na escola.

        Seus olhos estavam vermelhos e dava para perceber a tristeza envolvendo o seu semblante inocente, seu rostinho puro de princesa, nesta época, com dez anos de idade, disposta a alegria quase todos os dias, sem notar o mundo podre ao redor, vivia pisando em rosas, procurando sonhar com um mundo melhor, cheios de duendes, fadas e príncipes, um sonho que um dia já tivemos, esperanças que motivaram o nosso crescimento atual e que se perderam no dia a dia da luta pela sobrevivência e que agora é fonte onde nossa continuação. Um retorno ao verdadeiro caminho que leva a felicidade( se existe esse caminho, só as crianças conhecem), sinceramente, essa troca de sentimentos é uma coisa tão bela que pode arrancar lagrimas de velho cirurgião carrancudo que convive todos os dias com a morte e com a doença, que não acredita mais em nada.

        -Por que essas lágrimas filha? - perguntei, sabendo o motivo da pergunta tola, pois tem perguntas que são assim: ditas para dentro, feitas para quem pergunta.

        -Sei que ia ficar feliz se tirasse tirado uma  nota máxima – me abraçou com um pouco mais de lagrimas nos olhos.

        Olhei para os olhinhos cheios de lagrimas e sentei no meio fio.

        -Senta aqui – disse a ela batendo na calçada para que ela sentasse do meu lado, as ruas estavam lentas, os carros passavam em sua busca por posições, um ônibus escolar deixava meninas e meninos anônimos em escolas, sem pai e mãe, no entanto eu estava ali, no meu mundo com o que tinha de mais importante para mim, na hora mais sagrada de todas.

Um momento que não queria perder, sublime, inesquecivel, porém jamais seguraria aquele momento para sempre, hoje sei disso.

        Ela sentou e aconchegou o corpinho minúsculo ao meu.

        Pai é proteção. Pai é tudo. Contei uma historia para ela, pensando no meu pai.

        -Em 86 eu tinha a sua idade, nessa época havia uns relógios com jogos eletrônicos, sempre quis ter um, coisa bobinha, os meninos de hoje nem ligariam, carrinhos de corrida quadradinhos – disse passando a mão nos seus cabelos ternos.

        -O vô te deu?

        -Vou te contar essa historia toda- tirei do bolso da calça um relógio velho e surrado , claro que estava sem bateria, guardei aquele relógio por trinta anos e agora era o momento de mostrar a minha filha,um tesouro que pertenceu a um garoto que fiu um dia.

        -Ele te deu, que legal, você tirou nota máxima! – disse  minha filha, seus lábios lindos iguais ao da mãe, cheios e cor de framboesa, olhos puxadinhos como os meus.Minha filha representava uma conexão com  minha identidade, conexão com a alguma coisa verdadeira.

Minha mulher, parte importante de tudo aquilo, fica ausente naquele momento, por respeito ao pai, ao marido e ao amigo, ela sempre sabia como agir, discreta,afastou-se, calada, mulheres têm esse dom, ela olhava tudo do outro lado da rua com lagrimas nos olhos, entendendo tudo.

        -Não querida, por incrível que parece, não tirei nota máxima,falhei em três – disse olhando para minha filha, lembrando-me do meu pai, que por infelicidade estava morto, abatido por um AVC há dois anos, senti falta daquela proteção, da sua presença sem palavras.

        -Como você ganhou o relógio, se não tirou a nota máxima? – disse minha filha segurado o relógio como se ele fosse um filhote de passarinho, com aquele carinho sobrenatural das crianças.

        -Naquele dia eu cheguei na minha casa com as provas, havia perdido a nota maxima em três matérias, entreguei ao meu pai que passou a mão na minha cabeça e não disse nada, apenas olhou as notas e foi dormir, no outro dia o relógio estava na minha cama, bem cedo.

        Que momento difícil? Não consegui segurar as lagrimas e chorei com saudade do meu pai,choro sufocado,sem demonstrar.Acho que meu pai,que não conviveu com a neta, teria um grande orgulho ao vê-la sair da escola.

        -Não chora pai – disse colocando a mãozinha no meu olho, uma regra, pai não chora.

        Enxuguei as lagrimas com um lenço e continuei a historia.

        -Procurei seu avô pela manhã e disse que não merecia o relógio, pois não havia tirado a nota máxima, mas que guardasse aquele troféu para o bimestre seguinte que eu ia tirar, com certeza. Meu pai sorriu e disse.

-Cadê as tuas provas do ano passado, as que você fez antes dessas?

        -Estão guardadas no quarto, por quê?

-Eu lembro muito bem delas e você melhorou o seu desempenho, estudou mais, se aplicou mais, se esforçou!Isso é o suficiente, a consciência de aprender,por amor ao aprendizado. Escuta filho? Jamais fui um aluno igual a você, me orgulho muito de você, é assim que temos que viver: não correndo atrás da perfeição, de ser melhor que o nosso amigo, mas superando os nossos limites.

        Ela não chorou, apenas disse.

-Papai, vovô está no céu?

        Apertei a sua bochecha, carreguei minha filha no colo até do outro lado da rua(coisa que não fazia há muito tempo) e disse.

-Ele nunca saiu de lá filha.

JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 14/06/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4340752
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