NESTOR
                                             
Quando entrei na sala de espera do Dr. Fonseca, a mulher lia uma revista. Dei um sonoro “boa tarde”, acompanhado de sorriso. Sem resposta. Antipática, pensei. Nem me olhou. Abri um livro e também me pus a ler. Mas a falta de consideração da criatura incomodou-me. Passei a ruminar uns desaforos para dizer-lhe. Ao mesmo tempo fui discutindo internamente os prós e os contras. O que ganharia com isto? Se era mal-educada, ou concentrara-se no artigo que lia e não me escutou, envolvera-se com preocupações que a levaram para distante dali, se discutia com filhos, com a empregada, com colegas de escritório, o que me importava?

E se tivesse de propósito querido me ignorar? Examinei-a nos detalhes. Cabelos bem cuidados, rosto maquilado, vestida num conjunto verde claro, com brincos da mesma cor e sapatos beges, de salto alto, unhas com esmalte rosado, davam-lhe boa aparência, indicavam situação financeira melhor do que a minha.

É isto, pensei, não quer se misturar, nem olha para pobre. Voltei a xingá-la, mentalmente: antipática.

Fechei o livro. De qualquer modo, não li uma frase sequer.

Já sei, a tipa é racista. Deve ter me olhado quando entrei e logo enterrou a cabeça na leitura para não ter de falar. Tem gente idiota neste mundo. Pensam que não morrem, que não vão apodrecer do mesmo jeito. Que nojo.

Pensando bem, vou tirar isto a limpo. O que é que ela pensa?

— Será que o Dr. Fonseca atrasou o horário? A senhora viu quando entrou o outro paciente? Faz tempo?  

Acreditam? Fez que nem ouviu. Pode? Sou mesmo uma idiota, isto sim. Ainda me humilhei e nada. Ai, que vontade de dar uns safanões.

Calma, Joaquina, calma. Olha os modos. Se perder a compostura aí mesmo é que a mulher vai pensar que tem razão em não se misturar com gentinha. Vê se toma jeito. Tá bom. Mas sinto necessidade de fazer alguma coisa, senão vou enlouquecer. E o doutor Fonseca a me dizer que estou melhor. Ele é que pensa. Meu sangue está fervendo, vou acabar dando uns tapas nesta sujeita.  E é pra já.

Quando cheguei perto da mulher, abriram a porta. A jovem sorridente aproximou-se, cumprimentou-me e sentou ao lado da senhora. Voltei para meu lugar, meio sem jeito, como se surpreendida em flagrante delito. Abri o livro.

— Mãezinha? Tudo bem? Demorei porque o trânsito está uma loucura. Ninguém se entende.

Beijava a mãe e falava olhando-a no rosto, que segurava próximo ao seu. Voltou-se para mim e deve ter percebido interrogações penduradas ao redor.

— Minha mãe é surda. Está em tratamento com o Dr. Fonseca, mas ainda sem resultado.

Senti meu rosto ficar vermelho. Que vergonha! Quase bati na surda. Que vexame. Preciso me controlar. Que feio, né, Joaquina?

— Mas o doutor é psiquiatra. O que tem a ver com a surdez? Não é caso para um médico?

Ela riu, mas havia tristeza no rosto moreno, aureolado de cabelos crespos, compridos.

Nisto, a porta se abriu. Era o Dr. Fonseca, despedindo-se da paciente e solicitando que Vera Maria entrasse. A moça cumprimentou o doutor e sentou-se a meu lado, quando a mãe entrou.

— Gosto de ter com quem conversar, enquanto a mãe é atendida. A senhora estranhou o caso, mas é que minha mãe ficou surda por ter passado por uma situação difícil. É psicológico. Não há alteração física no aparelho auditivo.

— Como pode? O que foi que aconteceu? Desculpe, não quero ser indiscreta. Se não quiser me contar...

— Não tem problema. É um caso triste. Fui atingida, assim como meus irmãos, mas somos jovens, reagimos bem. Mamãe é que não suportou. A senhora é casada?

— Sim. Tenho um casal de filhos e uma neta, do filho mais velho.

— Então, vai compreender o sofrimento dela. Casou com o primeiro namorado. Tiveram quatro filhos. Nunca trabalhou fora, porque ele não deixou. Dizia que a esposa é a rainha do lar, que não precisava ficar exposta aos olhares de cobiça dos homens na rua. Não saía de casa sem o marido, nem mesmo para ir ao supermercado. Nós reclamávamos, dizíamos que não devia ser assim submissa, que isto era coisa do passado, mas mamãe argumentava que se sentia bem deste jeito, que não queria mudar. Foi então que a bomba explodiu. Papai tinha outra família.

— Isto é coisa que acontece. Muitas pessoas até aceitam. Eu, por exemplo, sempre soube que divido o meu homem com outra. Mas nunca me faltou nada, nem amor. Pra que complicar? Levo a vida numa boa. 

— É. Cada pessoa reage de uma forma. Minha amiga suicidou-se, quando descobriu que o pai tinha outra. Mamãe idealizara o marido, achava-o perfeito, tinha certeza de que vivia somente para ela, que nem via outras mulheres. Por isto o choque foi maior. E o que mais a perturbou foi o desespero de perder o homem que amava, de ficar sozinha, de ter de enfrentar a vida sem a companhia dele. Tememos que fizesse alguma besteira, como minha amiga. Depois de muita confusão, reuniu a família e propôs um acordo: tudo ficaria como antes, fingiríamos que nada aconteceu. A contragosto, concordamos. Papai tentou explicar:

— Eu era jovem...

Mamãe deu um grito, impedindo-o de continuar.

— Chega, Nestor! Não quero ouvir mais nada.

— A partir daquele momento, ficou surda. Custamos a entender. No início, pensamos que não nos respondia por estar zangada com todos, quem sabe nos culpando pela situação. Depois, passamos a observação que não reagia a qualquer ruído, nem mesmo quando tocava o telefone. Levamos ao otorrino, como não houvesse nada, procuramos o Dr. Fonseca.    

Enquanto a jovem falava, eu mantinha os olhos arregalados. Podia ser coincidência, é claro, existe muito Nestor por aí.



 
 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 25/06/2013
Reeditado em 25/06/2013
Código do texto: T4357739
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