Cold, cold heart

Escrito ouvindo Norah Jones

Em seu maior monento, o único onde permitia-se sentar-se sozinha, acender um cigarro na janela e simplesmente observar o movimento dos carros e das pessoas lá embaixo na rua, sentia-se estranhamente mal com sua solidão.

Muitas vezes na vida perguntou para si mesma que, dedicando-se a tudo que lhe era de direito dedicar-se e mais, que seria por prazer, esperado que gostasse, sentia-se extremamente solitária e distante.

Faltava-lhe carinho, faltava alguém para compartilhar as pequenas e as grandes coisas, simplesmente para estar por ali, ou estar ali, ou estar próximo, ou estar abraçando, beijando ou nada disso, simplesmente para estar em algum lugar na sua vida, para ser alguém da sua vida, como não fosse suficiente todos os adjetivos e tanto carinho que se manifestasse por outra forma.

Apagou o cigarro, resolveu descer para a rua, movimentada aquela hora da tarde-noite, onde as pessoas dedicavam-se à apenas estar ali, descompromissadas. Antes, escolheu um perfume, floral, penteou os cabelos novamente, tomou o elevador e, ao cruzar a portaria, começou a perceber todos os outros elementos que compunham a paisagem: os carros em velocidade, as calçadas esburacadas, a poças poucas da chuva caída no meio da tarde, a sandália que emitia um barulho sufocado pelas buzinas dos ônibus, as paisagens de costume.

Parou nas vitrines, observando roupas, calçados, mulheres solitárias como ela, casais jovens e maduros, uma banca de camelô com reproduções de cartazes de cinema, atrizes e atores. Comprou duas de Audrey Hepburn, afinal, adorava Audrey.

De repente, a saudade de um outro tempo quase a fez chorar, sufocando para que ninguém percebesse, enrolando a ponta do cabelo entre os dedos, trincando os dentes para que não escapasse nenhum murmúrio.

Decidiu andar mais meio quilômetro, indo ao lugar onde acostumava tomar alguma bebida ouvindo jazz. Não importou-se se a roupa que estava vestindo a expunha demais ou não fosse adequada para uma noite que se iniciava. Não estava ali para isso, não estava nem aí para aquilo, não desejava nada, absolutamente nada.

Sentou-se e sabia que ali serviam um vinho que lhe agradava muito, pediu meia-garrafa, alguma coisa para comer e ficou ouvindo o som que vinha da banda... Cold Cold Heart... Jamais o seu , com certeza, "cold, cold heart" , never...

Será o álcool ou ainda a música, ou inesperadamente ela mesma, que fazia sentir-se completamente à vontade, sozinha, com milhões de pessoas acompanhadas em volta? Pediu um cinzeiro, acendeu um cigarro e sorria disfarçadamente, um riso meio "Mona Lisa", meio ela mesma, misterioso por sentir algo indiscritivelmente bom.

As horas passavam e pensava em resgatar muitos projetos, aqueles que, como papel velho, guarda-se para jamais serem resgatados novamente, menos por não se querer mas simplesmente por se esquecer mesmo. Viu o quanto deixou-se ferir, o quanto se permitia sofrer a cada momento que não lhe respeitavam como ser pensante e ser humano, de carne e osso, o quanto conseguiram que se sentisse menos do realmente era.

Ali, ouvindo aquela música sentiu-se imensa, tremendamente grande, sentiu-se uma mulher daquelas que sempre desejou, sentindo o ar mais leve a cada respiração.

De repente, o garçon a tira de seus devaneios, de seus pensamentos que já a faziam, por si só, feliz. Um bilhete, uma cantada de classe, tinha de reconhecer. Fecho perfeito para uma noite , não? O homem era belo, a noite agradável, o que mais poderia querer?

Decisão na hora, agora, nem um segundo mais. Pediu a conta, uma caneta emprestada também, algumas linhas escritas em sua bela letra, pagamento com cartão de débito, bolsa no ombro e caminho em direção ao rapaz que sentara-se no fundo do bar.

Um sorriso, mais uma vez o velho sorriso de "Mona Lisa", enigmático. Colocou o bilhete em cima da mesa, saiu. Nele, apenas algumas frases: "Obrigada, você não poderia ter me deixado mais feliz. Mas hoje eu aprendi a amar a mim mesma e estar bem sozinha. Desculpe".

Tinha certeza que o belo rapaz não havia entendido nada, a tomara por arrogante, por mais que o sorriso denunciasse sua alegria. Agora, cada figura que via em cada lugar lhe pareciam mais belas, os casais, acidentes de alegria a dois, ou tristeza bem dissimulada, o vento soprava mais fresco, sentia-se mais bela, bastava-se.

"Cold, cold heart"? Jamais! Talvez ele pulsasse mais e mais feliz e constante. Ao rever a paisagem do alto da janela, já não importava-se mais em estar sozinha, não sentia falta dos beijos e dos abraços. Aprendeu que cada momento, cada lição, cada satisfação , tudo lhe vinha de graça, em tantos outras presenças e milhões de grandes ausências que estavam ali, ao seu lado.

André Vieira
Enviado por André Vieira em 03/04/2007
Código do texto: T436131