DE UM VAGÃO PARA O OUTRO
                                                                                      
Era a primeira vez que andava naquele tipo de ônibus. Quando passava pela sanfona que liga as duas partes, algo estranho aconteceu. As visões se misturaram. Chovia. Em minhas mãos, a sombrinha e uma sacola. Nos ombros, a bolsa a tiracolo. Tentei segurar-me, enquanto tudo sacolejava. No instante, nublaram-me os sentidos e instalou-se o pânico. Mãos firmes no corrimão, o corpo balançando, o barulho somado às vozes.

“Não faz assim, menina! Larga isto. Não olha para baixo”.

O trilho correndo, o silvo da locomotiva, o medo, as pedras, os dormentes, tudo passando rápido, muito rápido, numa vertigem esmagadora. Minhas pernas não alcançam. Choro, com vontade de gritar, o corpo tremendo, num pedido silencioso de socorro. Mamãe insistindo:

“Dá um passo para frente. Solta isto. Cuidado!”

Alguém pegando minha mão, puxando-me.

Sento-me no primeiro banco disponível. As imagens correndo. O trem, o ônibus, mamãe, o burburinho, coração aos pulos.

O coletivo para. Pessoas calmas vão entrando, sorriem, cumprimentam o cobrador. Sentam-se. Respiro fundo.

— Tudo bem, tudo bem.

É meu coração que fala, acalmando minha alma.

Um menino senta-se ao meu lado. Olho para ele. Sorri. O ônibus para, arranca, torna a parar. Pessoas entrando, pessoas saindo.

Abro o jornal ao acaso. As letras dançam, e meu estômago embrulha, e as lágrimas pingam abundantes sobre o texto: “pai estupra filha”.

Novamente meu cérebro com dificuldade de diferenciar o presente do passado.

Agarro-me freneticamente ao banco, lutando com as imagens: eu pequena, não sei bem que idade, meu pai levantando de manhã, para me dar mamadeira na cama, enquanto mamãe ficava dormindo. Ele dizendo pra ela que eu ficava com medo e não queria dormir, por isto ficava comigo. Mas era tudo mentira, mentira. Ele tirava minha calcinha e colocava aquela coisa em mim e dizia pra eu não chorar e nem contar pra ninguém, nem pra mamãe, senão eu ia apanhar de verdade e ainda matava ela. Às vezes me batia com uma cinta e depois me acariciava.

O menino coloca timidamente a mão no meu ombro.

— Não chora assim, senhora. Está com dor?

Olho para ele ainda apalermada, com dificuldade de me desligar da cena cruel da infância. E os olhos castanhos do garoto me levando a outras lembranças. Meu pobre filho. Nunca saberá quem é o pai.   

Mamãe longe, muito longe. Partiu para a outra vida, no vestido azul que escolhera. Rosto sereno no adeus, confiante no marido que amava.






 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 30/06/2013
Reeditado em 07/07/2013
Código do texto: T4364920
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