Pedrão,perdão!

Forçado pela situação econômica, sempre no vermelho, o carro velho sempre o acompanhou, ou melhor, ele sempre os acompanhava, geralmente empurrados. Até os mais discretos não conseguiam se conter. Ninguém entendia como ele se locomovia com aquelas jabiracas.

- E daí Pedrão, quantos litros teu carro faz com um quilômetro?...

- O Pedrão não passa perto do caminhão do lixo!

Pedrão não se importava já se acostumara com as piadas.

Adquiriu varias manias por causa do velho carro. Não podia ver um pedaço de arame na rua que corria para juntar. Se tirasse os arames que amarravam os pára-lamas, cano de descarga, porta malas, pára-choques e tantas outras partes do carro, provavelmente se desmontavam.

Seu carro mais estranho foi um corcel ano 69, quatro portas, de cor quase azul. Ele o chamava de Trovão. A lataria em péssimo estado tinha mais furos que uma peneira. Os bancos dianteiros, apoiados por um pedaço de pau, não deixavam espaço para o banco traseiro.

Em dias de chuva, não podia andar porque o carro inundava, molhava quem estivesse dentro, pior se houvesse uma poça. A única preocupação do Pedrão era com o som, isto é, com as fitas do Wando, Mercedes Sosa, Benito de Paula, Peninha e muitos outros do estilo que carregava embrulhada num saco plástico dentro do “porta-tudo”. Carro velho não tem porta-luvas. E para dizer que Pedrão não cuidava do carro, uma vez por mês trocava o óleo, aquele que já fora usado pelo seu vizinho que jamais deixou passar de três mil quilômetros.

Dizia ele colocando o dedo indicador no óleo retirado, juntando o polegar como estivesse alisando.

- “Vizinho este óleo ainda está bom!”.

Quarentão, grisalho e boa pinta, estão certo que mais papo que pinta, ele dizia dar pro gasto. Gostava da noite e um bom papo sempre foi seu forte. Bastavam cinco minutos de conversa e já se ficava amigo de Pedrão. Com as mulheres fazia sucesso, o que o levou os três casamentos desfeitos e muita fossa, curtidas dentro do Trovão, geralmente na beira de alguma praia vendo o sol nascer sozinho.

Foi num encontro inesperado que Pedrão e Trovão se uniram. Estava procurando uma peça para seu outro carro, um opala de quatro portas que só vivia dando problemas, principalmente com o câmbio, cuja alavanca de mudança de marchas ficava junto ao volante. Muitas vezes ficou na estrada porque trancava tudo e o carro não saia do lugar, porém ele já estava acostumado e sempre dava um jeito de destrancar o trambulador. Mas desta vez a caixa quebrou inteira. Havia percorrido quatro ferros-velhos e nada de conseguir a peça que quebrara. O vendedor que lhe atendeu pediu para que ele procurasse no monte de sucatas uma caixa de três marchas com câmbio no volante, disse que se lembrava vagamente de ter visto uma entre aquele cemitério de carros velhos próximo ao segundo barracão.

Quando Pedrão contava o modo que encontrou o Trovão, seus olhos brilhavam de felicidade como se estivesse vivendo o momento.

- Estava passando por um monte de pneus, tinha pra mais de mil, arrumados como um muro. Vi um pneu com aro 15 e pelo estado me interessei e o puxei. Foi ai então que pelo buraco vi aquele Corcel coberto de pneus velhos.

Neste momento, Pedrão dava uma parada e esperava que algum curioso lhe perguntasse o que ele fez em seguida. Naquele momento o único que não sabia da historia era eu.

- E daí Pedrão o que aconteceu?

- Primeiro eu observei que quase tudo estava no lugar, estava “inteirasso”, bastava colocar a bateria, os bancos, os faróis, o pára-choque dianteiro, a maçaneta das portas e claro, darem uma boa lavada. Esqueci a caixa e perguntei para o vendedor quanto valia o Corcel e ele me respondeu que não estava à venda o carro inteiro, só me venderia se fosse por peça. Desanimei e fui embora.

-Pedrão, mas como é que você conseguiu o carro?

-Calma que eu chego lá!

-Consegui a caixa para o Opala e mandei dar uma bela de uma pintura. Ficou um brinco! O que eu não consegui foi tirar da cabeça o Corcel.

Um dia, ao passar perto do ferro-velho entrei direto e chamei o dono e fiz uma proposta:

- “Quer trocar este Opala pelo Corcel”?

- Que Corcel? Perguntou o vendedor.

- “Aquele que esta atrás da fila de pneus.”.

- O dono nem sabia do Corcel, mas cresceu o olho no meu Opala. Daí em diante é desnecessário falar o quanto eu me amarro nesse carrinho, descobri depois da lavação que sua cor é azul, e esta cor sempre me deu sorte, botei o apelido de Trovão porque o motor parece rugir. Passo fome e frio se forem necessário, mas do Trovão não me separo!

Passou o inverno e não encontrei mais o Pedrão.

Uma chuva torrencial caia sobre a cidade, numa das avenidas centrais o trânsito parou. A água criou uma imensa lagoa de aproximadamente vinte centímetros de altura e carros de todos os tipos estavam parados. Nesta noite os serviços de guincho da cidade faturaram para o mês inteiro e não davam conta de atender os chamados. O caos tomava conta. Alguns carros praticamente já boiavam. Mesmo parado, nossa situação era um pouco melhor, pois estávamos em um local mais alto, o que permitia uma vista panorâmica de toda a situação.

Vi várias pessoas tentando empurrar seus carros de luxo inutilmente para cima de uma elevação. Sem saber de onde surgiu, um carro aproximou-se. Fiquei curioso e me perguntei como é que aquele carro tinha passado no meio de tanta água. Se a chuva não tivesse aumentado, teria ido com água nos joelhos perguntar ao motorista. Ainda estava me perguntando quando ao meu lado passa o Trovão do Pedrão puxando um Vectra. A água que saía do cano de descarga formava um redemoinho. Pedrão com a cabeça para fora observava o local que deixaria o carrão. Quando ele parou e começou a retirar a corda que amarrava o outro carro, não agüentei e fui ao seu encontro.

-E daí Pedrão? Tudo bem?

-Tudo jóia. Respondeu ele sorrindo.

-Quer alguma ajuda?

Foi o meu mal, porque me pediu para lhe ajudar a rebocar outros carros que estavam enguiçados, inclusive o do meu amigo.

Quando acabamos a operação resgate, perguntei por que o Trovão passava e os outros não. Pedrão gentilmente me ensinou um truque simples.

- Vou te mostrar. Disse, levantando o capô do Corcel.

- O segredo é colocar um saco plástico bem amarrado na distribuição e pronto.

Não sei se é verdade, mas garanto que o velho Trovão socorreu muitos carros novos e ganhou uma dezena de amigos. Quanto ao Trovão, teve a cor realçada pela lavação na marra.

Mudei de residência e por coincidência fui morar próximo á casa de Pedrão, fazendo com que nos encontrássemos diariamente. Conheci sua família, a terceira. Sua esposa loira, bem mais jovem do que ele, e seus quatro filhos, um do primeiro casamento e três do segundo.

Num certo tempo, observei que Pedrão não parava em casa e encontrei várias vezes sua esposa saindo sozinha, porém não tínhamos tanta intimidade para que eu perguntasse o que estava acontecendo. Soube mais tarde que o seu terceiro casamento não estava muito bem quando Pedrão colocou uma placa de “vende-se” no Trovão. Pedrão andava triste e quieto, passava a maior parte do tempo em casa, olhando para o carro, esperando que chegasse algum comprador.

Obviamente ninguém se interessava pelo Corcel de cor quase azul com quatro pneus carecas, cheio de furos na lataria e com os pára-choques e pára-lamas amarrados com arame. Isto sem contar a péssima condição interna.

Certo dia, Pedrão me chamou e começou a me contar o que estava acontecendo. Soube então que sua esposa lhe dissera que queria se separar dele e este eram os motivos da venda do Trovão. Precisava do dinheiro para dar a sua esposa poder ir embora com uma outra pessoa que conhecera. Ele me contou naturalmente o fato, sentia que ao falar na venda do Trovão é que ficava emocionado. Disse-me que já havia percorrido todos os picaretas da cidade, mas nenhum se interessou em comprá-lo. Depois de um silencio principalmente o meu, não sabendo o que dizer ante aquela situação, ele me disse:

- Não estarias interessado em comprar o Trovão? Você é uma das poucas pessoas, para não dizer a única, que gostou dele.

Fiquei novamente mudo. Confesso que se tivesse possibilidade naquele momento, compraria o Trovão para ajudar o Pedrão.

Ante o meu silêncio ele falou:

- Este carrinho é como um filho pra mim e você é testemunha do quanto ele é valente. Nunca me deixou na mão. Agora, sou obrigado a me separar dele.

O jeito que Pedrão falou me comoveu, nunca vi ninguém gostar tanto de um carro. Ia sugerir que ele vendesse para o ferro-velho, coisa que no momento arrasaria ele. Ofereci o pouco dinheiro que Tinha, ele olhou-me como dizendo que não adiantaria aquela quantia.

Saí lamentando o fato de que nada poderia fazer para ajudá-lo.

Naquela semana não vi o Pedrão e nem o Trovão, por causa do trabalho, fui viajar. Quando voltei, já na chegada olhei diretamente para a casa dele, na garagem estava o velho Corcel e no pátio um carro novo reluzindo ao sol. Mal saí do táxi, chega Pedrão sorridente e me cumprimenta:

- Olá amigo, como foi de viajem? Está tudo bem?

Era o velho Pedrão irradiando felicidade. Ante a surpresa agradável perguntei:

E daí Pedrão? Resolveu o problema em casa?

-Está tudo bem, as crianças estão numa boa, a mulher já foi embora e o Trovão esta jóia.

Enquanto me ajudava a descarregar, Pedrão continuou a me contar:

- Amigo você não imagina o que aconteceu. Estava desesperado para vender o Trovão, como você bem sabe. Naquele dia que estivemos juntos eu resolvi vendê-lo em peças. Achei um comprador para o motor, outro para a caixa e a suspensão, a lataria, nem o ferro-velho quiseram. Comecei a retirar as coisas de dentro do porta-malas e adivinha o que eu achei atrás da coluna do amortecedor?

Eu ia dizer: um pé de milho com três espigas! Mas não cheguei a dizer nada e fiquei olhando para ele com cara de curioso. Ele continuou:

- Achei uma caixa bem embrulhada, fechada com fita crepe.

Pedrão falou e no momento quem ficou me olhando foi ele. De imediato lhe perguntei:

- E daí Pedrão.

- dentro tinha várias jóias de ouro e um anel de diamantes.

- Não acredito! E de quem eram as jóias?

- De quem era eu não sei, mas achado não é roubado. O Trovão já está comigo há três anos e nunca ninguém veio procurar nada. Resolvi vender tudo e comprei um carro novo.

- Que bom Pedrão! Ainda bem que o Trovão ficou com você! Disse-lhe dando uma tapinha nas costas.

Não amigo, ficou comigo até hoje. Sendo você a única pessoa que não tirou sarro dele e a única que tentou me ajudar, a partir de agora, e ele é seu.

Estava sem carro porque a minha situação econômica se comprometera com a nova casa. Andar de ônibus enfrentando vinte e cinco quilômetros todos os dias de trânsito infernal, gente pendurada sobre minhas costas e fungando no meu pescoço não era fácil. Ante a idéia de andar com o Trovão fiquei paralizado. Ele notando o meu embaraço comentou:

- Não se preocupe amigo, ele está emplacadinho até o final do mês de março. É embarcar e sair por aí.

Não passaram dois minutos quando caí na real. Iria precisar de muita coragem para ir trabalhar com o carro do Pedrão, o mico seria descomunal. Resolvi então agradecer e ser sincero com ele:

- Amigo Pedrão, não posso aceitar seu carro. Sei o que ele representa para você e não é justo ficar com ele sem pagá-lo.

- Que nada, dinheiro não é tudo na vida companheiro!

Como um replay, a imagem do ônibus superlotado, as pessoas cutucando minhas costas, a cara do chefe ouvindo minha justificativa pelos atrasos, o burdum de sovacos que impregnavam as minhas roupas e o calo de estimação no dedão do pé direito invadiram a minha cabeça.

Daquele dia em diante, dormi mais uma hora, não precisava ir para a fila do ônibus e o velho Trovão não permitia que eu chegasse atrasado.