O BÊBADO ou UM CERTO SENHOR GREGÓRIO

PRÓLOGO

Um dia conheci um bêbado como tantos que perambulam pelas ruas de São Paulo e não teria me chamado à atenção se ele não houvesse me dito seu nome. Um nome por demais pomposo para a pessoa que o tinha. Estava mendigando em frente à pensão onde eu morava e a proprietária perguntou-lhe para que queria dinheiro se estava bêbado ao que ele respondeu:

-“Se a senhora quer dar, dê. Se não quer, não dê”. Somente falou isto. O que me chamou a atenção sobre aquele pobre coitado foi a forma afrontosa como se dirigiu à D.Amélia. Demonstrava um ar de superioridade ao falar. Perguntei-lhe o nome.

-“Pra que você quer saber?” Novamente aquele ar altivo.

-“Curiosidade” Eu lhe disse com displicência.

-“Gregório” Aquele espectro de homem mastigava as sílabas “GRE-GÓ-RIO, como se isto fosse a única coisa importante que lhe restasse: seu nome. Pareceu-me que em sua constante embriagues ainda era consciente da beleza e da força de seu nome e o dizia, com um misto de confiança e displicência, como a estranhar que alguém não o conhecesse.

Um bêbado como existem outros mil, mas com uma diferença: este tinha um nome pomposo. Não era nenhum Zé ou Chico, mas Gregório! Um homem com um nome assim, por certo teve um passado, uma família... uma história. Foi por estas conclusões que resolvi dar uma estória para este simplório ”bebum” em substituição à sua história real, que infelizmente não tive a chance de conhecer. Ele bem poderia ter sido como foi retratado neste singelo conto, tem tudo para não ter sido... Mas quem sabe... Bem poderia ter sido assim.

Sempre que vejo um bêbado, o enquadro na visão que criei de Gregório, e vejo, hoje, que todos os bêbados com quem cruzei nos caminhos da vida são um pouco como aquele que se orgulhava de seu nome.

Faço atravéz de “UM CERTO SENHOR GREGÓRIO”, um elogio ao orgulho de um nome e uma abominação à fraqueza dos homens que se deixam vencer pelo vício.

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Capítulo I

Corria o ano de 1945 em Teodoro Sampaio. Final da segunda Grande Guerra. Na cidade tudo parecia normal, a vidinha sossegada daquele vilarejo incrustada no extremo sul de São Paulo, não parecia ter sido afetada pela hecatombe que dizimava vidas e bens nos campos da Europa.

A maioria dos moradores era de origem humilde e passavam seu tempo na roça. Como a economia de guerra exigia tudo que era produzido era comprado pelo Governo Federal. O que gerava certa tranqüilidade para os produtores: tinham a garantia de venda de suas colheitas. O preço era pequeno, mas era garantido.

Nos botequins das esquinas, melhor dizendo: quatro botequins, o falatório trazia notícias da guerra terrível. Todos passavam o tempo falando de “alemão” e “comunista”, como quem falava do próprio Belzebu. Arlindo, como dono de um dos botequins, tudo ouvia e não ouvia ao mesmo tempo. Tinha outras preocupações: sua esposa estava esperando o primeiro filho do casal. Tinha algumas promissórias para pagar e o movimento não era dos melhores. Seu botequim poderia ser considerado uma mercearia, devido à diversidade de seus produtos, mas manter aquele “status” estava lhe tirando o sono e deixando seus cabelos brancos. A época não era muito boa para comerciantes como Arlindo. Metido em seus problemas, Arlindo nem prestava atenção ao que ocorria em derredor. Afinal que lhe interessava o que ocorria na Europa? Se morria ou não tanta gente tão longe de sua casa e de sua realidade? Sua esposa estava com problemas na gravidez e bem poderia ela mesma, morrer no parto. Isto sim era um problema. Oscarina, para ele, valia mais que dez batalhões de soldados dizimados em campo de batalha.

-“Seu Arlindo. Que é que o senhor tem? Parece tão distante. Posso ajudá-lo em alguma coisa?”. – Chico era o ajudante da bodega e mostrava-se atencioso com o patrão, afinal Arlindo era bem mais jovial que ultimamente,

- “Não Chico. Não tenho nada que não possa ser resolvido. São as dificuldades da vida. Obrigado pela importância.” Nesta hora Arlindo preferiria estar bem distante de todos. Sozinho. Assim poderia encontar-se consigo mesmo e desafogar aquele nó que lhe oprimia o peito. Mas o trabalho e a responsabilidade prendiam-no naquele lugar, obrigando-o a remoer seu pensamente ali mesmo.

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Agosto de 1945. Fim da Grande Guerra. Todo o país estava em festa. A Alemanha já havia sido derrotada e agora caía o Japão. Os “emissários do cão” haviam sido derrotados.

As festividades e alegriass chegaram à pacata Teodoro Sampaio. Todo o país estava em festa. Não se falava de outra coisa na cidade. Os “alemão” e os “japa” tinha sido derrotados. O poderio do Império do Sol Nascente e do III Reich posto no chão.

Os mais letrados viam nisto uma boa notícia, como todo fim de tragédia é uma boa noticia. O fim da guerra era o fim das privações o início da fartura. Os menos iluminados viam aí a salvação do cristianismo e a derrota da “besta fera” do Hitler.

-“O Reich alemão tombou. Hitler não podia dominar o mundo livre e cristão. Estava escrito que o mal não poderia triunfar!” O comentário era feito por um padre iugoslavo radicando no Brasil desde muito tempo e pároco de Teodoro Sampaio. Frei Vradja costumava almoçar aos domingos na casa de Arlindo. Eram bons amigos e conversavam sobre muitos assuntos, inclusive sobre política. Arlindo era, em casa, muito diferente do que era na mercearia. Seu porte avantajado e sua forma, muitas vezes, grosseira de falar, escondia uma inteligência e perspicácia, que somente os amigos íntimos conheciam. Quem apenas conhecia o Arlindo no seu comércio, cometia o erro de compará-lo com seus clientes costumeiros. Era, segundo frei Vradja, uma das poucas “cabeças pensantes” da paróquia e com quem valia a pena um “dedo” de prosa.

-“O erro do “homem” foi ter menosprezado o resto do mundo. Aí mesmo que o ideal de reconstrução nacional estivesse justo, os meios estavam errados. Ele poderia ter dominado o mundo, como o fez os Césares romanos, não precisava tentar exterminá-los ou escravizá-los. Aí esteve seu erro: Roma caiu somente quando menosprezou os adversários...”. Arlindo comentava como conhecedor do que se passava “além mar”.

-“Bem deixemos quem já morreu nas mãos de Deus e vamos viver nossa vidinha da melhor maneira possível. Você Oscarina, como vai o neném? Olhe que quero batizar o fedelho muito em breve viu”.

-“Ah, seu vigário, ainda vai demorar um pouco. Só daqui a dois meses. Eu não vejo a hora, pelo menos assim não vou me sentir tão inútil e vou poder voltar a ajudar o Arlindo na venda”. – Oscarina falava olhando com carinho para aquele homem grandalhão e amoroso ao seu lado.

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-“Inútil nada! Deus escolheu-a como depósito de uma semente da vida e isto é de muita responsabilidade e de muita utilidade. O Arlindo pode se virar sozinho e além do mais com a vinda desta criança a vida de vocês será totalmente diferente. Deus ajuda a quem se ajuda. Lembrem sempre disso. Ah! Vou ter que ir embora, tem um monte de coisas para fazer na igreja e o tempo é curto” – virando-se para Oscarina –“ Oscarina, muito obrigado pelo almoço e pense bem no que lhe disse. Quanto a você Arlindo, qualquer dia deste venho para jogarmos uma partida de xadrez”.

Assim como Oscarina havia dito, dois meses após aquele domingo nascia um belo garoto. Um menino forte e bem formado. O orgulho do casal que tinha agora seu primeiro herdeiro, mesmo estando casados já a teres anos. Tinham vinte e oito (ele) e vinte e três anos (ela). “Agora, finalmente eram uma família”, palavras de Oscarina. Arlindo escolheria o nome de Gregório para o garoto, pois GREGÓRIO era um nome forte e ressonante e daria um ar de nobreza ao garoto. Gregório, Imperador de Roma, foi seu pensamento ao escolher o nome. Não sabia ele que este nome foi de um papa, se o soubesse, talvez não o tivesse escolhido, pois mesmo sendo amigo do frei Vradja, era um tanto avesso à Igreja Romana.

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Capítulo II

Gregório nascera em meio a festas e foi criado cercado do amor e proteção de seus pais. Uma criança inteligente que tudo queria saber. Um de seus maiores prazeres era fazer seus próprios brinquedos de madeira. Queria uma espada de pirara? Gregório fazia. Uma carabina de caçador? Era só falar com Gregório. Se alguém queria um carro, embora não fosse seu forte sempre fazia um com uma lata de óleo. Com sete anos ingressou no Grupo Escolar e começava a ajudar Arlindo na mercearia. Atendia os fregueses com desenvoltura e alguma vez até passava o troco.

Durante o ano letivo da terceira série primária, como era de praxe foi o 1º da classe e cobiçava a medalha dada pela professora no final do ano ao aluno que fosse o 1º da classe. Era uma cruz de metal dourada, parecendo uma condecoração alemã como a que ele havia visto em um filme. Só que neste ano um outro aluno, Norberto, o ultrapassaria em um ponto na prova final ficando com o cobiçado troféu.

Foi durante toda sua época de escola um aluno retraído e pouco afeito às confusões e brigas típicas da adolescência. Achavam-no covarde, devido ao seu tamanho de certo ponto avantajado e sua aversão natural à violência. Tanto que um determinado aluno, Ailton, vivia fazendo brincadeiras de mau gosto com ele. Até que um dia, não suportando mais as provocações, Gregório partiu para a briga. Foram quinze minutos de empurrões e socos mal dados no pátio da escola. Após este tempo deram a luta por encerrada e cada um contou a vitória para si. Tudo teria terminado aí, não fosse o Ailton achar que deveria partir para uma revanche. Em um determinado dia, durante o intervalo das aulas, Ailton partiu para o ataque e saltou sobre Gregório, desfechando-lhe um soco, sem nenhum aviso prévio. Gregório caiu mais pelo empurrão que pela violência do soco. Levantou-se furioso e já não era mais aquele garoto pacato. Estava uma fera. Aproximou-se de Ailton e desferiu-lhe potente soco no queixo que o pos para dormir. Parecia briga de cinema. Foi o que disseram na escola. A fama de valentão de Ailton acabara ali. Gregório estava com 13 anos.

Houvera provado para todos que não era covarde, mas daí a ostentar aquela fama de valentão ia um distancia considerável. Gregório voltou a seu comportamento típico: calmo, pacato e arredio.

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O tempo passava depressa e Gregório, agora com 16 anos, estudava a noite e ajudava Arlindo na mercearia durante o dia. Era um sacrifício extra que exigia do rapaz todo o tempo que sobrava para estudar, ou não conseguiria alcançar os tópicos do colégio.

Todo o dia que ia para a escola, passava defronte a uma casa com varanda e via uma jovem no muro. Trocavam olhares furtivos e algumas vezes ele lhe acenava no que era correspondido. Começava a nascer um namorico de menino.

Gregório ficava ansioso por sair da mercearia para a escola, queria ver aquela jovem novamente, e quem sabe, lhe mandar um aceno.

Naquela noite, teve duas aulas vagas, o professor de latim havia faltado e na volta para casa, surpresa: lá estava a jovem sentada na praça da matriz junto com outra, que viria, a saber, ser sua irmã mais velha. Estava um pouco inibido, mas mesmo assim aproximou-se:

-“Oi, tudo bem?”.

-“Tudo bem...” e a conversa poderia morrer ali mesmo, mal começada... Não. Gregório não queria e não iria perder aquela chance.

-“Você quer pipoca?”.

-“Quero...” novamente o assunto estava acabando.

-“Você costuma falar pouco assim mesmo ou é só comigo?”.

-“Ora, nem uma coisa nem outra. Eu nem mesmo o conheço. Nem sei seu nome...”

-“Por isso não seja: Gregório. A seu dispor” disse inclinando-se com uma mesura exagerada. –“Não sou mais um estranho. E você como se chama?”.

-“Juliete...” – Juliete riu a não mais poder com a palhaçada de Gregório. Pronto estava “quebrado o gelo” inicial e o assunto fluiu como se já se conhecessem desde a infância. A conversa estava tão interessante que não se deram conta do horário.

- “Puxa vida, já são dez horas. Tenho que ir Mariana está me esperando” – Mariana havia se afastado para conversar com umas amigas quando os dois começaram a conversar animadamente a pelo menos uma hora.

-“Já! Nem notei...”

-“Ciao. A gente se vê qualquer dia...” Gregório não iria perder esta chance única.

-“Este qualquer dia poderia ser no sábado às 8 horas da noite?”. Ela sorriu.

-“Claro. Até sábado.”

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Juliete afastou-se e encontrou Mariana que havia se despedido das amigas, olhou para trás e lá estava Gregório a acenar. Gregório não cabia em si de contentamento. Correu para casa, literalmente, sentia-se leve, veloz e chegou à casa ofegante. Estava feliz!

Entrou em casa alheio e tropeçou com sua mãe na sala.

-“Desculpe mamãe” beijou-a e abraçou-a fortemente.

-“Eu hem? Está no mundo da lua ou descobriu botija?” Oscarina fez a observação com carinho, como se adivinhasse o que se passava no coração de seu filho. Lia-se a felicidade estampada naquele rosto jovial onde nem mesmo havia nascido um bigode. Naquela noite Gregório dormiria muito mal, ou melhor, não dormiria. Estava realmente enamorado de Juliete. No café da manhã, estava com a cara de sono na mesa e Arlindo fez a observação que o deixou encabulado:

-“Ô moleque, amor demais mata tá sabendo?”

-“Papai, não é nada disso...” Gregório estava vermelho como um pimentão maduro. Seu pai tinha lido seu coração como se estivesse lendo um jornal.

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Capítulo III

Haveria uma festa de final de ano no Clube Literário e como acontecia todo ano, Arlindo e Oscarina não faltariam. Gregório acompanharia Juliete e sua irmã Mariana, já que os pais destas não gostavam muito de festas.

Cedo da noite Gregório foi à casa de Juliete, estavam em dezembro de 1962. Na varanda encontrou Salvador, pai de Juliete. Homem de meia idade, gordo, sorriso bonachão e rosto avermelhado.

-“Boa noite seu Salvador. Como está o senhor?”

-“Menino, vai tudo bem conforme é a vontade de Deus. Veja por exemplo: já encontrei comprador para meu gado e ainda por cima me pagando o que eu pedi. É pra ter muita alegria e agradecer a Deus por não ter esquecido da gente.”

Salvador não era propriamente um criador, embora tivesse seu sítio e algumas cabeças de gado. Costumava passar o ano comprando algumas cabeças para vender na entre safra. Segundo ele quando todo mundo precisava de carne para os churrascos de final de ano. Este ano tivera um bom lucro em sua venda e estava que não cabia em si de contente. Com este pequeno negócio de comprar e vender gado, tinha um bom padrão de vida e pretendia para suas filhas uma vida melhor do que a que tivera. Comprara alguns alqueires de terra e começara uma pequena lavoura, estava “arrumando a vida” conforme diziam na cidade.

-“Pois Deus ajuda a quem se ajuda seu Salvador. Meu pai sempre diz isso.”

-“Juliete! Gregório já chegou! Vamos meu rapaz, entre.” Esperança, mãe de Juliete era o oposto de Salvador: magra, esbelta e com um “que” de fragilidade. Era a gentileza em pessoa. Fazia de tudo para deixar Gregório à vontade.

-“Como a senhora está, D. Esperança?”

-“Como Deus quer...” Neste momento Juliete surge na sala. Estava deslumbrante. Tão bonita que Gregório quase não contém o espanto. Vestia um vestido de baile negro, de alças finas prateadas e com uma echarpe de prata, seu vestido tinha um decote ousado para a época: descia até um pouco abaixo de onde seria a alça do soutien, deixando seus ombros nus, de uma pele acetinada que lembrava pêssego, típica de quem somente agora entrava nos verdes anos da vida.

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Embora de família tradicional e até certo ponto conservadora, Salvador fizera uma concessão, afinal sua filha já não era uma menina e estava com o noivado marcado: iriam somente os dois ao baile do “Literário”.

-“Puxa vida, tá querendo mesmo arrasar a festa...” Gregório estava orgulhoso de namorar, ao que aos seus olhos parecia, a garota mais linda de Teodoro Sampaio. No entanto uma ponta de receio se fazia presente em seu coração. Estava linda demais. Muitos rapazes vinham de São Paulo e de Bauru, passar o final de ano com as famílias e o “Literário” era o ponto de encontro desse pessoal bem instruído.

-“Que arrasar festa, que nada. Arrumei-me bem para estar com você. Se não quiser tiro o vestido e visto uma outra roupa, como saio todo dia” Fez um exagerado ar de ofendida.

-”Eita menina malcriada sô. D. Esperança me socorra.” Todos riram. Saíram os dois para a festa, prometendo não voltarem com o “sol nascendo”, nas palavras de Esperança.

Estavam chegando ao baile quando Juliete puxou Gregório pelo braço e perguntou:

-“Você está inseguro por quê? Notei um ar de preocupação comigo quando você me viu. O que houve?” Juliete, mesmo com pouca idade sabia o que provocava nos rapazes e sabia que naquele dia o clube estaria cheio de visitantes, alguns bem bonitos, como era a “propaganda” entre as jovens da cidade.

-“Eu inseguro!? Imagina. Estou com uma garota formidável que me ama e que vai casar comigo, por que estaria inseguro?” Entraram no clube que estava bastante cheio e foram para a mesa já reservada pela família de Juliete. Salvador era sócio do clube e tinha direito a uma mesa bem situada junto à pista de dança. Estava plantada a semente da discórdia que não tardaria a dar seus frutos.

Foram dançar e durante a dança pareceu que Gregório disse algo que Juliete não gostou e esta o deixou “plantado” no meio do salão “pagando o mico” e voltou para a mesa sozinha. Gregório ainda não entendia o que se passava com Juliete e quando voltou para a mesa estavam chegando ao Clube Arlindo e Oscarina, fez sinal para os dois que foram até sua mesa. Oscarina foi até Gregório o beijou e convenceu Arlindo a sentar-se em outra mesa, mesmo este sem entender o porquê, aceitou. Afinal o ambiente entre os dois “pombinhos” não parecia o mais agradável.

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O que havia provocado aquela discussão, ninguém soube. Somente em casa Gregório pôs o pai a par: havia recebido no dia anterior um convite para trabalhar em um banco em Bauru, conforme Arlindo já sabia. Como estava cursando o Clássico, pretendia fazer Direito e não achava que um banco combinava com seus anseios. Seu emprego na Prefeitura de Teodoro Sampaio, mesmo ganhando pouco estava mais dentro do perfil que ele pretendia. Conversara isto com Juliete que não entendera como ele poderia deixar de ganhar mais no Banco da Lavoura de Minas Gerais e morar em Bauru. Não dava para entender que amor era esse por Teodoro Sampaio. Aquele fim de mundo. Não adiantou os argumentos de Gregório, Juliete dizia que com a miséria que ele ganhava na Prefeitura nunca iam poder se casar. Em certa parte Juliete tinha razão. Ganhava realmente muito pouco, mas estava trabalhando no que gostava e pretendia estudar, o que com certeza no banco seria um tanto difícil, ainda mais em uma cidade onde teria outras despesas. Além disso, indo para um emprego tão diferente de suas aptidões, terminaria por fazer um outro curso e não o tão sonhado Direito.

Juliete ficaria quase toda a festa de mau humor e magoada com Gregório. Recusando-se a dançar, mesmo após todos os pedidos de desculpas do rapaz. Um outro rapaz, vindo de Bauru, que estava olhando o casal deste que estes entraram na festa, aproximou-se:

-“Gostaria de dançar comigo?” Gregório explodiu. Era ousadia demais daquele baixinho. Não reconhecera Ailton, o único menino com quem brigara em toda sua vida e que derrotara na escola há alguns anos atráz.

-“Vai dançar coisa nenhuma! Se arranca “toco de amarrar jegue”! Disse isto enquanto se levantava possesso. O outro não estava disposto a atender a ordem recebida e, no momento em que Gregório o empurrava com um braço, desferiu-lhe potente soco no ouvido. Gregório nunca afeito a brigas, não conseguiu esquivar-se a tempo e recebeu aquele “coice”. O mundo piscou e ele caiu no chão. Atordoado, levantou-se e recebeu outro soco no mesmo lugar. Aí o mundo apagou-se de vez e a escuridão tomou conta de seus olhos. Desmaiara devido ao golpe. Ainda ouvindo vozes distantes:

-“Não tenho mais doze anos, idiota!”

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Ailton ao ver que Gregório tinha desmaiado, juntou-se aos seus amigos e retiraram-se rapidamente do local, não queriam problemas com a polícia.

Arlindo e Oscarina já haviam se retirado da festa quando do acontecido. Juliete vermelha de vergonha tentava acordar Gregório que mesmo desperto continuava “grogue” e só depois de alguns minutos seria capaz de entender o que ocorrera. Fora nocauteado por um estranho e, ainda por cima, menor que ele.

-“Eu não esperava. Ele me pegou de surpresa...”

-“Não precisa explicar...” a voz desdenhosa de Juliete informava nas entrelinhas que alguma coisa havia “quebrado” sem conserto no amor dos dois.

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Capítulo IV

25 de Dezembro. Já completamente refeito da derrota do dia anterior e quase completamente esquecido do lamentável incidente, Gregório foi até a casa de Juliete almoçar, como era praxe ao noivo atencioso. Iria pedir a mão de Juliete ainda naquele almoço. Conversou algum tempo com Salvador na sala e quando Esperança chegou notou seu “semblante carregado” de preocupação.

-“Gregório. Juliete quer ve-lo no quarto” Gregório estranhou a forma quase fria de Esperança o tratar, mas achou que era impressão sua e foi até o quarto. Juliete estava sentada na escrivaninha, lendo, ou fingindo que lia um livro. Não levantou os olhos quando Gregório entrou.

-“Senta aí e espera eu terminar este parágrafo” Gregório sentiu tocar o alarme de coisa errada. Aquela frieza de Esmeralda e agora o desdém de Juliete... Tinha coisa errada aí. Só não atinava o que era. Tamanha a falta de importância do que ocorrera na festa do dia anterior.

“Juliete, querida, você está magoada comigo? Fiz alguma coisa que a desagradou?”

-“Não... você não fez nada!” jogou, exasperada, o livro ao chão e aumentando a voz “você nunca faz nada e isto me irrita. É sempre o bonzinho, o educado, o filhinho da mamãe, o funcionário padrão o melhor aluno... isso tudo me irrita e muito! Veja só nem para se defender... sua cara está inchada feito um balão de festas e você acha que não fez nada?” Apontava para o lado do rosto de Gregório que havia recebido os dois golpes. “Realmente você não fez nada. Apanhou feito um “maricas” de um fracote menor que você! E ainda me pergunta o que é que fez?”

-“Ora, meu amor. Eu não esperava o ataque e além do mais já passou e eu nem me lembro...”

“Mas eu me lembro! Um baita homenzarrão ali estendido feito um saco de feijão no chão e todo mundo comentando. Ai que vergonha... Um nanico com metade de seu tamanho, de que adianta todo este tamanho se não é capaz de se defender?”

Somente agora Gregório caíra em si: era realmente alto. 1.80 m, com um corpo atlético, bonito só que nunca fora afeito a brigas a arruaças e Juliete esperava dele a mesma ação que Randolf Scot tinha nos filmes. Ele

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deveria ter derrubado com um “soco cinematográfico” aquele enxerido que ousara importunar sua querida. Fazer o que? O que passou, passou. Agora era consertar o mal feito.

-“Meu amor, isso não tem nenhuma importância...”

-“Gregório! Você é um frouxo e um poltrão. Não vou me casar com um frouxo que apanha de qualquer um, vá para a “barra da saia” de sua mãe, pois com certeza ainda deve tomar mamadeira e pedir colinho...” não chegou a completar os impropérios. Gregório acertou-lhe um tabefe no rosto, e como ela estava inclinada para frente em meio à sua ira, postou-a deitada na cama.

-“Saia daqui! Cafajeste!! Você só tem coragem com mulheres, cafajeste!!! Safado!! Eu o odeio! Saia daqui!!!” Com os gritos de Julieta Esperança correu para o quarto e encontrou-a completamente transtormada. Não era mais aquela doce menina, parecia uma fera. “Mãe tire esse safado de meu quarto!”

-“O que houve minha filha?” Esperança não entendia nada, sabia que alguma coisa havia acontecido, mas o que? Salvador continuava na sala lendo calmamente seu jornal, sabia que era “chilique” de mulher. Soubera da briga da noite anterior e não dera “tratos à bola”, não vira naquilo o que valesse o comentário.

-”Tira ele daqui, já falei!” Gregório saiu cabisbaixo e desolado, onde estaria aquela garota linda e meiga que conhecia. Passou por Salvador que sorriu para si e fez um sinal de que não se preocupasse. “Chilique de mulher. Amanhã tudo vai estar numa boa. Ligue não.”

Gregório chegou à rua e começou a pensar no ocorrido, sua cabeça estava rodando. Como poderia um caso tão banal como aquela briga desmanchar um ano de namoro e felicidade? Nada explicava aquilo. Era uma outra pessoa. Sua mãe quando soubesse do corrido diria: “ainda bem que foi antes do casamento”. Oscarina tinha sempre um lado prático de ver as coisas, só que naquele momento a dor da perda de seu primeiro amor era muito forte e Gregório não queria ir para a “saia da mamãe” como dissera Juliete.

Entrou em um bar da praça e tomou seu primeiro “porre”. Afinal o momento merecia isto, era seu primeiro caso de amor e tivera um final digno das novelas da Rádio Nacional. Fora agredido da forma mais vil e não soubera como reagir. Nunca ninguém o chamara de “maricas”.

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Entregou-se a seus pensamentos de jovem adulto (acabara de fazer 18 anos) frustrado e entregara-se aos vapores da cerveja até que tudo lhe pareceu uma brincadeira de mau gosto. Até o momento em que falar sozinho lhe pareceu a coisa mais natural do mundo, mesmo estando com a voz empastada.

-“Elha não pudia fazê issho cumigo. Eu só num gossto de brigá... só issho...”

O álcool encarregou-se de apagar as dores da humilhação e agora ele via o mundo mais colorido e as pessoas que passavam estavam mais lentas e menos agressivas. Até o problema que o levara a beber já não tinha importância. Estava completamente Bêbado quando chegou a sua casa.

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Capítulo V

No mês de Janeiro de 1963 Gregório deixaria Teodoro Sampaio, não para ir para Bauru ou para o Banco da Lavoura de Minas Gerais, queira ir para longe e foi para São Paulo. Aqui se alistou na Polícia Militar o que nunca havia passado por sua cabeça, era uma mudança radical. Logo faria curso de cabo e tomava gosto pela corporação.

O país vivia momentos difíceis e Gregório não pensava em manter-se muito tempo como militar, logo pretendia voltar a estudar e ingressar na faculdade.Seu sonho era ser Advogado!

Com a queda do governo João Goulart e a tomada do poder pelo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, iniciando aí uma longa página da historia do Brasil. Gregório estava alinhado com as forças que apoiavam a legalidade e via em Pernambuco e no Rio Grande do Sul a saída para manter o governo de Jango no poder. Estava politizado. Era à época filiado ao PC. Foi expulso da corporação e colocado sob vigilância, já que não participava de nenhuma atividade considerada perigosa. A partir daí foi levado por antigos companheiros para o submundo da resistência. Entregava panfletos nas fábricas, pichava muros à noite e corria da polícia quando esta aparecia. Sua vida de militante de esquerda não seria muito frutífera, cometeria alguns deslizes e acabaria preso pela Operação Bandeirantes, da PM paulista. Seu crime: distribuía panfletos para o congresso operário do PC em frente à Volkswagen, no turno da madrugada. Corria o ano de 1965. Embora não houvesse praticado nenhum crime de vulto, a Ditadura Militar, então instalada, não perdoava os opositores e Gregório, após algumas seções de tortura, seria encarcerado por longos cinco anos nos presídios do estado. Seria transferido para o Presídio de Itirapina, junto com outros presos políticos. Neste presídio sua vida seria um pouco melhor, pois não se sabe por que, o Diretor Cel. Eugênio simpatizou com aquele rapaz enorme e com ar inocente. Tanto que algumas vezes conversavam nos jardins sobre vários assuntos e quando o assunto era política Gregório sempre tinha receio de que o Cel. Eugênio quisesse lhe aplicar alguma cilada. Ficava mudo como um defunto. Mesmo assim Eugênio permitia que ele tivesse acesso às revistas de seu escritório, bem como ao jornal de domingo.

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Nas páginas de “O cruzeiro” e do jornal “Folha da Tarde” podia encontrar mesmo com toda a censura imperante naqueles anos, alguma notícia que o fizesse participar do mundo fora daquelas grades.

-“Gregório, não sei como você foi se meter em um “fuzuê” deste. Rapaz, não é todo mundo que consegue sair daqui de bem com a vida, quando não morre aqui mesmo. A vida neste lugar, principalmente nestes dias, não tá fácil. Dá pra ver que teu lugar não é aqui” Seu colega de cela, um homem condenado há 30 anos por assassinato, tinha razão. No entanto com ele seria diferente, tinha que ser! Joca havia sido condenado por matar um homem em um conflito de terras lá para as bandas de Mato Grosso e quando soube que Gregório era um comunista, tendo sido torturado por isto, tomou-o sob sua proteção e costumava afirmar que: “mexer com meu amigo é colocar o pé na cova”. Gregório não poderia abrir mão e tal amizade, muito embora não fosse este tipo de amizade que cultivaria fora das grades. Ali o mundo era outro mundo. Afinal Joca nunca lhe faria mal e ele estaria fora muito antes de cultivar novas amizades.

-“Ora camarada, e existe algum lugar certo para alguém neste mundo?”

-“Menino, estou aqui há dez anos e lhe digo: isto aqui não é pra você!”

-“A dura (era como os presos referiam-se à lei) não pensou assim...”

-“Não importa. O fato é que neste lugar só deveria ter gente ruim e a gente vê que você é uma pessoa de trato. Estudou e tudo... Nem falo de mim, pois acabei com a raça daquele “filho da puta” e não tenho nada a perder (sua mãe e pai, além de um irmão haviam sido mortos neste conflito de terras). Já você é jovem e tem muita coisa a aprender e fazer lá fora. Não é certo...”

-“Ora joca, tá ficando sentimental? A gente ainda vai rir muito do que houve aqui” Gregório sabia que era uma afirmação de momento, nunca mais veria este companheiro de sofrimentos.

Gregório estava com vinte anos e corria o ano de 1966. Começara as perseguições da ditadura militar no Brasil, após alguns meses de prisão estava moldado um novo homem, parecia mais velho, frio, compenetrado, calculista. Em nada lembrava o jovial rapaz que saíra de Teodoro Sampaio há alguns anos atráz.

Quando de seu vigésimo aniversário, dia 12 de outubro, receberia de Joca um presente: um isqueiro de prata com seu nome escrito. Como ele havia conseguido aquela preciosidade, nunca saberia.

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Uma semana depois Arlindo o visitaria. Estava abatido e triste.

Oscarina havia falecido há dois dias. Nunca conseguira recompor-se da crise nervosa que a acometera ao saber da prisão e condenação de seu filho, foram meses sem saber notícias suas, até saber que estava em Itirapina. Nunca conseguiu visitá-lo, sua saúde abalada não permitia uma viagem daquelas. Iso aumentou a dor e a revolta de Gregório. Sua sensação de culpa não o abandonaria mais. Chorou convulsivamente nos braços de Arlindo.

-“Quem deveria ter morrido era eu e não ela. Eu é que fui o idiota.”

-“Calma filho. Calma. As últimas palavras de sua mãe fora para você se cuidar e conseguir a condicional, ela não sabia que presos políticos não tinham condicional, e eu não lhe disse para não desfazer suas ilusões. Você não tem culpa nenhuma da morte dela. Sua hora chegou, como chega a de todo mundo. Quanto a ser idiota. Eu não acho que você seja idiota. Você foi preso por suas idéias e não por um delito criminal.Você está aqui por acreditar em alguma coisa e isto é motivo de orgulho para mim. Se não fiz o mesmo foi por Oscarina, mas tenho inveja de você.” Arlindo era um romântico, não imaginava o que era a tortura e a vida em um presídio cercado de “gente ruim”. Não imaginava...

Gregório estava revoltado com o mundo e já com três anos de pena cumprida seria transferido para o Presídio do Carandiru. Agosto de 1968, auge da Ditadura no Brasil, ninguém estava seguro. Polícia nas ruas em clima de guerra. Estudantes atacando a Polícia. Parecia que a paz nunca mais voltaria a reinar na família brasileira. Criava-se o CCC - Comando de Caça ao Comunista. A transferência dos presos políticos ocorreu depois de uma informação que alguns mais envolvidos iriam tentar uma fuga, aí a direção do presídio decidiu transferir todos para o Carandiru, que tinha mais experiência com este tipo de presos. Novamente Gregório encontrava-se em meio a pessoas perigosas, só que agora sem a proteção de Joca.

No novo presídio Gregório seria colocado na ala dos presos simples, o que não impedia que houvesse entre eles valentões como João “Boca de Tramela”. Condenado por estupro de menor, que mesmo não considerado um preso perigoso pela Diretoria do presídio, o diretor tinha dúvidas quando à sua sanidade e não o queria junto aos demais presos temendo por sua segurança, a despeito de seu corpo volumoso. Estavam no refeitório quando entrou João “Boca de Tramela” e chegou até Gregório:

-“Olhaí meu chapa, tu tá no meu lugar e vai ter que se arrancar!” Gregório, calmamente, sem querer confusão já estava levantando-se quando João desferiu-lhe potente soco no rosto. Gregório instintivamente desviou-se e encaixou-lhe certeiramente o pé na virilha o que fez com que o valentão urrasse de dor e se dobrasse ao meio, ao mesmo tempo em que o

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rapaz acertava-lhe a nuca com os dois punhos fechado. Nocauteando-o definitivamente. Quando os guardas chegaram ao local, a briga relâmpago já havia acabado e o grandão estava dormindo aos pés de Gregório. Isto lhe valeu uma semana de solitária e o resto da pena em paz e sossego. Eram os louros da vitória.

28 de outubro de 1970. Estava livre. Um novo homem, marcado por uma vida que não buscara, mas que o perseguira desde aquele momento em que vencera Ailton, ainda na escola.

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Capítulo VI

Gregório viu a Avenida Cruzeiro do Sul logo ao sair do Portão do Presídio e as obras do metrô. Tudo lhe pareceu novo e diferente. Ninguém estava esperando-o. Não se sentiu, todavia, deprimido por isto. Arlindo estava internado na Santa Casa de Bauru com problemas respiratórios e ele encontrou-se assim: livre e sozinho em uma grande cidade, que após longos cinco anos voltaria a enfrentar. Precisaria ambientar-se e aprender a conviver com sua própria liberdade. Uma estranha sensação o acometia: achava que a qualquer momento seria levado de volta à cela e que tudo aquilo era apenas um sonho. Afastou-se a pé do presídio e de sua imagem sombria. Tudo faria para esquecer aquele lugar. Queria sentir a liberdade reprimida por tanto tempo e começou a andar sem rumo. O fim do dia o encontrou em um bordel, onde passaria a noite.

Sua vida não seria um “mar de rosas”, Gregório sabia disto como ninguém. Procurou a arquidiocese de São Paulo, afinal era um preso político e pensou em pedir ajuda para uma colocação, pois precisava desesperadamente de um emprego.

Já se passara um mês desde que conquistara a liberdade e Gregório ainda não conseguira sequer uma indicação para emprego. Vivia à custa da Igreja. Havia cursado o Clássico, não era nenhum analfabeto, fora funcionário público em sua cidade natal, fora Policial Militar, mas o fato de ser ex-presidiário e ainda por cima: preso político, fechava todas as portas. Sua “folha corrida” da polícia vinha com um aviso sinistro: “cumpriu pena de cinco anos e três meses em presídio estadual”. Era como uma pá de cal. Seu futuro estava condenado. Era assim que o estado brasileiro tratava quem o desafiava: sem perdão. Mesmo após cumprir a pena imposta, continuava inimigo do estado e como tal: escória!

Os padres da cúria metropolitana de São Paulo, até que tentavam conseguir um emprego para Gregório, mas não era fácil. Desta forma somente encontrou vagas para empregos para os quais não necessitava nenhuma preparação: contínuo ou vigia noturno de algum galpão esquecido por Deus. Após perambular por muito tempo pelas ruas de São Paulo, a pé, pois não tinha dinheiro para condução, encontrou uma vaga de porteiro em um motel de alta rotatividade na “boca do lixo”. Pelo menos não morreria de fome ou de frio nas noites de inverno. A ajuda na recolocação que o estado dava a “ex-presidiários” reintegrados, não existia para os “inimigos do estado”, pelo menos fora preso e condenado assim.

Gregório começava a lamentar-se o dia em que se envolvera com tudo isso. Poderia muito bem ter ficado na Polícia Militar, hoje seria sargento e teria uma vida boa, mas não. Cabeça dura quis mudar o mundo...

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Deu no que deu. Estava com vinte e seis anos e marcado de forma indelével pela vida.

Às vezes Gregório perambulava pelas ruas do centro de São Paulo, mas logo voltava para a segurança de seu quarto no porão do hotel. Sua solidão aumentava a cada dia e isto o consumia por dentro. Parecia até que nunca tivera uma vida normal, uma família. O som mais agradável para ele naqueles momentos era quando passava defronte a alguma residência e ouvia as pessoas conversando e o som de garfos e facas batendo nos pratos, era uma música maravilhosa: o som de uma família! Gregório começava a achar que aquele meio esquisito e perigoso da “boca do lixo” era seu meio real e que nunca iria se desvencilhar daquelas pessoas. Daquele ambiente. Era um mundo marginal e ele fazia parte dele.

Não demorou muito para que ele encontra-se sua válvula de escape em um copo de bebida ou no corpo usado de alguma prostituta, isto após ter se embriagado bastante. Terminou fazendo a escolha apenas pela primeira opção, no íntimo sabia que não deveria envolver mais ninguém em sua desgraça, mesmo sendo uma prostituta. Ficava “enchendo a cara” até altas horas, nos seus dias de folga até decidir finalmente voltar para o seu quarto de porão e dormir. As idéias já haviam sido afogadas no álcool e a solidão absoluta (Arlindo havia morrido no início do ano) já não o açoitava mais.

No início, suas noites de bebedeira, além de serem apenas nos seus dias de folga, eram uma forma de fugir à rotina. Agora se tornara um hábito constante e estava completamente dominado pelo alcoolismo. As noites ficavam mais curtas e a alvorada sempre o encontrava com um copo na mão e a mente distante.

Associações de AA poderiam ajudar Gregório, mas para que ele iria querer ajuda? Não tinha nenhum objetivo. Tudo lhe fora tirado, sua dignidade jogada no esgoto. Este era o “presente” da ditadura.

Logo perderia seu emprego, pois mesmo trabalhando em um antro de prostituição, tinha que ter horário e responsabilidades. Era um emprego como outro qualquer.

Sabia que precisava separar-se do álcool que o destruía mais profundamente que sua vida de encarcerado, mas não tinha forças para tanto. Sempre voltava a “encher a cara” após alguns dias de sobriedade. Somente encontrava consolo para seu desespero e desesperança naquele que era seu maior inimigo. Aquele que gostaria de derrotar: o copo!

Uma destas noites, completamente embriagado e cantarolando pela Avenida Rio Branco é atropelado por um automóvel e somente não morre esvaindo-se em sangue por ação de uma viatura policial que o atendeu.

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Levado às pressas para o Hospital das Clínicas, precisou esperar o atendimento, pois estava completamente embriagado. Não poderia ser medicado naquelas condições, disseram os médicos. Somente após 15 horas de espera em uma sala de emergência, seria tirado aquele curativo feito pelos policiais e dado seqüência ao atendimento. Agora completamente sóbrio e sentindo muita dor. A demora no atendimento e a gravidade do acidente o deixariam com um defeito na perna que o acompanharia pelo resto da vida. Seria manco da perna direita a partir daí.

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Capítulo VII

O acidente agiria como um despertador na vida caótica de Gregório.

Faria com que caísse em si e visse no que estava se tornando. Caso continuasse, bem pouco restaria a salvar do Gregório que ele mesmo conhecia: sonhador, cheio de planos... Era preciso parar. Parou!

Começara um novo trabalho agora como “marreteiro” na estação rodoviária da luz. A banca de roupas não era sua, nem poderia ser. Não tinha como. Pertencia ao um Maranhense que estava doente e por acaso o empregara em seu lugar. Nem mesmo Gregório sabia explicar como isto ocorrera. Estava andando pela estação, parou para ver alguma coisa na banca. Lá estava Oswaldo, sentado com uma perna enfaixada e com cara de dor.

-“Bom dia, o camarada quer alguma coisa?”

Ser chamado de “camarada”, fez Gregório se transportar à sua época do PC e perguntou:

-“Apenas me responda: o camarada conhece Engels?” Oswaldo assustou-se com a pergunta, mas como achou que aquele “bebum” não tinha cara de agente do DOPS, respondeu com um pé atráz:

-”Por que? O camarada conhece?”

Gregório não sabia aonde aquele “papo cabeça” ia levá-lo. Fora levado por impulso e fizera aquela pergunta que agora lhe parecia idiota, mas agora a “merda” já estava feita.

-“Todo “camarada” que se presa não só conhece Engels, como conhece Marx e o Capital...” Não chegou a terminar a frase, Oswaldo com esforço, levantou-se da cadeira, deu-lhe um abraçço forte e disse entre lágrimas:

-“Nem tudo está perdido camarada. Nem tudo está perdido...”

Começaria aí uma amizade que culminaria com Gregório trabalhando para Oswaldo, enquanto este tratava da erisipela.

Gregório morava em uma pensão próxima da estação, assim facilitava sua vida. A banca de roupas era montada todo o dia. Folga. Só no sábado à tarde e nos domingos. Era um trabalho estafante das quatro horas da manhã até quase às nove horas da noite, quando guardava tudo e dava o expediente por encerrado, voltando para sua pensão.

Não estava feliz, nem realizado, mas tinha pelo menos um motivo para continuar: Oswaldo confiava nele.

Em uma tarde de sábado, após receber o pagamento de Oswaldo, resolveu comprar algumas camisas em uma loja ali perto. Nada tinha contra as roupas que ele mesmo vendia. Mas não combinavam com seu estilo. Eram muito “pra frente”.

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Entrou em uma loja e começou a escolher algumas roupas. A vendedora, uma moça simpática, não muito bonita, mas mesmo assim bastante atraente, veio atendê-lo.

-“Posso ajudá-lo?”

-“Claro. Claro...” Gregório assustara-se, pois a vendedora chegara por trás dele e quando a viu, achou que estava vendo a mulher mais linda do mundo. Ficara encabulado, “como se ela houvesse escutado seus pensamentos”.

-“Estou escolhendo algumas camisas, e você poderia me ajudar. Não sei bem quais as cores que combinam comigo”

-“Que tal esta?” A vendedora apresentou uma camisa vermelha com flores enormes, era a última moda.

-“Bem... não é bem isto que estou querendo. Quero alguma coisa mais apresentável...”

-“Oh!” A moça compreendera que ali estava alguém que não gostava de se vestir “pra frente”, que gostaria de apresentar-se mais elegante. Encaminhou-se para o outro balcão abriu uma caixa de camisa e entregou-lhe:

-“E agora? Que tal esta?”

-“Agora a senhorita acertou em cheio.”

Conversaram mais um pouco algumas banalidades sobre as camisas e Gregório terminou comprando uma caça, um cinto e meias... E só queria comprar uma camisa. Ficariam conversando mais tempo não fosse o olhar carrancudo do gerente que achava que aquele cliente já dera o que tinha de dar e estava ocupando demasiadamente a funcionária.

Gregório pagara a compra e quando a recebeu da vendedora perguntou de surpresa:

-“Poderia voltar aqui outras vezes?” Ao que a moça, talvez não entendendo a profundidade da pergunta, respondeu:

-“Claro, se as roupas não ficarem bem, o senhor poderá vir trocar até a próxima terça feira.”

-”Eu gostaria de ve-la outra vez”. A impetuosidade de Gregório pegou a jovem despreparada que somente consegui rir para aquele rapaz. Um rapaz que aparentava mais idade do que realmente tinha. Um rosto marcado de uma profunda tristeza e os olhos fundos de melancolia. Apenas sorriu, mas um sorriso meigo que para Gregório teve o valor de um “sim”.

Gregório voltaria parta sua pensão, no entanto aquela noite seria diferente. Encontrara uma garota atraente e não conseguia tira-la da cabeça. Dormiria muito mal, esperando o dia amanhecer. Há muito tempo que não ia à igreja, mas naquele domingo, surpreendeu-se. Lá estava assistindo a missa das 7 horas.

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Almoçaria como sempre no mesmo lugar. Com a mesma companhia dos desajustados e sem família de São Paulo. Algo havia mudado, já não via aquele povo como abandonados da sorte, via-os agora como guerreiros da liberdade. Estavam sós porque buscavam um sonho de liberdade e sua escolha havia sido a solidão. Neste final de semana não sentiu nenhuma vontade de beber. Mas isso era só o começo. Esperaria por uma semana toda para voltar àquela loja, e uma semana é muito tempo para um alcoólatra. Sua luta contra a dependência foi hercúlea. Passou uma semana sem beber nada, e mesmo com um mau humor terrível, não se entregou à tentação e no sábado à tarde, seus pés o levaram para a malharia “Dois Irmãos”.

-“Posso ajudar?” Lá estava aquela jovem linda atendendo novamente ao mesmo cliente, sem, contudo demonstrar lembrar-se dele. Gregório não se deu por vencido. Afinal quantas pessoas deveriam ter passado naquela loja desde que o vira pela única e última vez? Não seria lógico gravar sua fisionomia.

-“Mas é claro que você não lembra de mim. Afinal tenho uma cara muito comum. Fui atendido por você no último sábado e quase a fiz levar uma bronca do chefe”.

-“Ah! Agora me lembro. Quanto à bronca levei sim, mas deixa pra lá. Como é? Algum problema com as roupas?”

-“Nada de errado com as roupas...”

-“Então?...”

-“Vim só pra te ver...”

-“Eu pensei que era brincadeira...”

-“Eu falei que viria...

-“Tá bom só que a gente não pode ficar conversando aqui. Seu Jeremias já está me olhando de novo. Vamos fazer de conta que você vai comprar alguma coisa. Daqui a duas horas eu estou largando e a gente poderia conversar em algum lugar...”

-“Te espero em frente à estação da Luz. Tchau”. Gregório parecia um garoto tal sua felicidade ao se despedir. Lembrou-se que nem ao menos sabia o nome da jovem, mas isso não tinha importância. Estava apaixonado. Acontecera o que ele nem imaginava que viria a acontecer novamente: apaixonar-se. Estava tão feliz que mereceria uma comemoração: uma cerveja gelada! Logo se censuraria pelo deslize, mesmo em pensamento. Que vergonha! Agora que estava indo tão bem, vinha um pensamento bobo daquele. Cerveja? Que cerveja? Não iria ceder ao vício, já se sentia um vitorioso. Ficou andando pela redondeza até que na hora marcada lá estava ele defronte à estação da Luz. Esperou intermináveis cinco minutos e neste tempo descomunal, imaginou que

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aquela garota não viria. Afinal o que ele teria que poderia interessar a uma jovem como aquela? Quando olhou para a calçada na direção da loja de roupas e a viu, foi a visão mais linda dos últimos tempos: lá vinha ela com o cabelo solto ao vento, vestia uma saia de sarja marrom, uma blusa branca com um pulôver de lã, também marrom em tom mais claro, calçava uma bota de meio cano, afinal estavam em pleno inverno e o frio era cortante na rua, mesmo sendo duas horas da tarde e o sol estar presente. Trazia ao pescoço um elegante cachecol de lã, que lhe caia ao ombro. Uma imagem divina. Chegou de mansinho e sorridente. A imagem de Gregório não era de todo má. Só agora ela via que ele estava com as roupas que havia comprado no último sábado: camisa de algodão azul claro, calça de sarja bege e um elegante paletó de couro também bege. Estava elegante. Parecia um senhor respeitável e deveria ser, pensou.

-“Oi. Já estava aqui imaginando o que eu precisaria fazer para falar com você”. Gregório precisava falar para esconder o nervosismo.

-“Aqui estou eu. Só tem um pequeno detalhe...”

-“Qual?...” Gregório ficou inquieto, lá vinha a “bomba”.

-“Não sei o seu nome e fica chato falar com estranhos” Ela sorria com aqueles dentes perfeitos.

-”Ufa! Não seja por isso. Gregório e o seu?

-“Heloísa.”

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Capítulo VIII

Passara-se oito meses desde que Gregório saíra da prisão e dois que conhecera Heloísa e deixara de beber. Seu vício embora tenha tido uma vida breve, foi muito intenso. Gregório passou seus meses de embriagues, noventa por cento de “porre”, só não bebia quando não encontrava dinheiro para tal ou quando estava dormindo, normalmente nas ruas. Hoje era um novo homem. Diferente daquele sonhador que queria fazer a faculdade de Direito e que deixara Teodoro Sampaio, ou mesmo aquele animal que precisava conviver entre marginais no presídio, sem saber se iria estar vivo no dia seguinte. Tudo parecia que ocorrera há muito tempo. Era, hoje, um homem mais maduro, marcado pela vida e com seus vinte e seis anos de existência tinha uma experiência que muitos não adquirem em meio século.

Desde que conhecera Heloísa sua vida era outra. Hoje era uma pessoa feliz. Parecia que um sopro de esperança bafejava em sua direção quando conseguiu um emprego de vigia noturno em uma fábrica no Brás. Deixaria Oswaldo, mas permaneceria com sua amizade por muito tempo. Tinha finalmente sua Carteira de Trabalho assinada pela primeira vez, desde o presídio e agora contribuía com o INPS, era um cidadão respeitável novamente.

Gregório trabalhava das nove da noite às sete da manhã o que lhe dava bem pouco tempo para estar com Heloísa, que mesmo conhecendo toda sua vida (ele fizera questão de contar-lhe tudo até os detalhes mais vergonhosos o alcoolismo) aprendera a estimá-lo e respeitá-lo por sua tremenda força de vontade. Era um homem bom e prestativo, todos os que o conheciam sabiam de sua índole boa. Namoravam firme e pensavam em casar. Estavam os dois, sós, em São Paulo. Por que não juntar suas solidões e serem felizes?

Ela uma moça simples que viera do sul de Minas Gerais para tentar a sorte em São Paulo, juntamente com uma colega, que nos primeiros meses de dificuldade desistiu do sonho e voltou. Heloísa não voltaria para Cachoeira de Minas. Não como uma derrotada. Afinal o que poderia esperar daquele fim de mundo? Ficaria em São Paulo e somente conseguiria uma pensão Feminina e um emprego em uma malharia. Ele um ex-presidiário, comunista, inimigo do estado e subempregado. Que belo casal formavam.

Era sempre assim: Heloísa esperava ansiosa que chegasse o final do dia para encontrar Gregório e poder lhe contar todas as novidades. Já ele não podia esperar o momento de poder cobrir de carinhos aquela que parecia ser sua bóia em meio ao naufrágio em que tinha se transformado sua vida. Todos os dias às sete horas da noite Gregório passava na malharia

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e esperava a saída de Heloísa, ambos tomavam o mesmo trem (ela morava na Mooca) ele saltava uma estação antes e ela seguia adiante. Era somente uma estação do percurso, mas dava para matar a saudade de um dia inteiro sem se verem. A vida dos dois era simples e Gregório amava isto em Heloísa: sua simplicidade e a capacidade de ver sempre o lado bom das coisas, mesmo nos momentos mais difíceis sempre via o que tinha de bom por traz de cada situação.

Gregório passaria os dois últimos meses ruminando uma idéia que o martirizava, só de imaginar que Heloísa dissesse não. Quando completou seis meses de namoro e completamente apaixonado, não resistiu à tentação. Afinal suas crises de solidão eram terríveis. Suas noites de inverno mais frias. Quantas vezes decidira tomar um porre e algumas destas vezes, quando sentava no balcão do bar, vinha-lhe à mente a figura de Heloísa e ele envergonhado pedia apenas um “pingado”. Só Gregório sabia de sua luta interior.

Chegara o momento. Estavam em uma pizaria (já que esta era a maior despesa que poderia ter). Gregório pegou as mãos de Heloísa, com extrema ternura entre as suas e com a voz velada perguntou com um tom quase inaudível, tamanha sua emoção:

-“Você quer se casar comigo?”

-“Ãh?” a expressão de Heloísa, um misto de espanto e surpresa, foi um banho de água gelada no coração de Gregório. Como poderia esperar que aquela garota maravilhosa quisesse “amarrar-se” logo com ele.

-“Deixa pra lá...” Tentou soltar as mãos de Heloísa, esta não deixou e olhando para ele.

-“Como deixa pra lá. Isto é jeito de pedir em casamento a mulher de sua vida? Mas é claro que aceito. Quando?”

-“Mesmo você sabendo que sou um alcoólatra, ainda assim quer se casar comigo?”

-“E porque não? Eu amo você com suas qualidade e seus defeitos e este defeito a gente vai cuidar dele amanhã mesmo” Desde aquele dia Gregório passaria a freqüentar os AA do Brás.

Heloísa era uma funcionária muito eficiente e uma excelente vendedora, logo seria promovida para chefe da loja o que lhe daria um salário um pouco melhor. Conhecendo um dos vendedores que atendia à Malharia Dois Irmãos, conseguiu um teste para Gregório na Artex Indústria Têxtil S/A, na vila Mariana. Iria trabalhar na segurança patrimonial da empresa com um salário bem melhor do que o de vigia noturno no Brás.

Naquela noite de Natal os dois tinham tudo para estarem felizes e marcaram o casamento para o mês de Maio do próximo ano. Não tinham motivos para esperar mais.

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Procuraram uma casa e a encontrou no Cambuci, bairro operário visinho à Mooca. Não era uma casa elegante, mas era um começo. Poderiam casar em Fevereiro como planejado. Com uma casa já alugada, decidiram que não tinham porque viverem separados e com despesas de aluguel. Na época não eram bem vistos os casais que se “amigavam”, mas quem iria se preocupar com aqueles dois? Nem vida social eles tinham.

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Capítulo IX

Com o novo emprego Gregório agora ganhava bem. O suficiente para começar a preparar sua casa. Compraria os móveis e utensílios. Sempre que tinham um tempo extra saíam a pesquisar e comprar os equipamentos de seu sonho. A casa era pequena e mesmo que quisessem muita coisa não caberia tudo naquele espaço, portanto deveriam ser comedidos nestas escolhas.

A cerimônia de casamento estava marcada para o dia dez de maio. Estavam ansiosos e os funcionários da Malharia haviam preparado uma pequena festa. Casaram apenas no cartório, conforme vontade da noiva. Não queria ter despesa e logo após a cerimônia viajaram para o litoral. Passaram uma “lua de mel” maravilhosa e Heloísa não cabia em si de felicidade. Gregório era tudo de bom: atencioso, educado, amoroso. Um tudo. Voltaram logo. Não tinham dinheiro para mais que um final de semana em Santos, além do que não estavam de férias e precisavam “bater ponto”. Não tinham ganho muitos presentes, pois eram poucos os amigos. A viagem fora um presente do amigo Oswaldo. Estavam que não cabiam de felicidade. Uma nova vida começaria a partir daí.

Com três meses de casados Heloísa começaria a enjoar e após fazer os exames em segredo, pelo INPS, descobriu que estava grávida. Era uma notícia maravilhosa e Gregório precisaria saber da forma mais festiva possível.. Uma coisa, no entanto a deixava preocupada: nunca haviam conversado sobre filhos e ela não sabia o que o marido pensava a respeito. Afinal mesmo não ganhando tão mal seria uma temeridade um filho. Com estas dúvidas e a insegurança típica de alguém grávida, Heloísa decidiu dar a notícia a Gregório em uma sexta feira. Estavam em uma pizaria, como era costume.

-“Gregório. Se eu lhe disser algo promete que não fica bravo?”

-“Fala e fica sabendo...” O ar brincalhão do marido a descontraiu.

-“Sabe é que eu fiz o teste e deu positivo...”

-“Teste de que?” Gregório continuava a comer sua pizza de mussarela.

-“De gravidez. Você vai ser papai.”

O garfo caiu de sua mão. Gregório ficara pálido. Sem voz. Por um segundo Heloísa ficou desesperada.

-“Eu. Pai!?”Finalmente Gregório conseguiu articular uma frase.

-“È. Bobinho. Você vai ser papai e eu... mamãe!” Heloísa tocou, carinhosamente, no nariz de Gregório com o dedo – “Papai!”

-“Eu. Papai! Nossa!” A notícia pegara Gregório de surpresa e ele não conseguia absorver aquela verdadeira “bomba” “Eu. Papai!” Continuava

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repetindo, como a querer convencer-se e somente após repetir uma três vezes, convencido, cobriu de beijos aquela que fora sua salvação. Agora a futura mãe de seu filho. Heloísa. Sua esposa.

-“E aí? Gostou da notícia?” Heloísa agora observava a cara de felicidade de Gregório.

-“Meu amor. Você só me dá alegrias. Tomou-a nos braços e rodopiou na pizaria, sob os olhares dos outros clientes que não entendiam nada. –“Eu vou ser papai!” Gritou para os demais, que com sorrisos e acenos o cumprimentaram. Heloísa temendo irem ao chão tentava acalmar os ânimos do pai alvoroçado:

-“Gregório desse jeito você termina “gorando” o neném, ou fazendo um coquetel com ele. Cuidado!” Sorria a não mais poder. Era com certeza uma mulher feliz.

De volta para casa não conseguiam dormir, faziam planos e mais planos para o “garotão” que viria. Quando finalmente conseguiram dormir Gregório teria um sonho estranho: Estavam em Teodoro Sampaio e ele procurava separar seu filho, um garoto forte e calmo, em uma briga no colégio. Todos estavam lutando entre si e o agressor de seu filho era Ailton, o mesmo que marcara sua vida. Acordaria esbaforido e vendo que Heloísa dormia placidamente ao seu lado, voltou a dormir. Teria sonhos estranhos. Sonharia com sua mãe e seu pai, ambos choravam. Seu filho estava longe de si. Ele chamava e o menino não atendia. Corria para Heloísa e esta se afastava com ele. Teria uma noite de “cão”.

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EPÍLOGO

Os seis primeiros meses de gravidez de Heloísa correram sem nenhum problema. “Tudo conforme mandava o figurino”, como costumava dizer o médico.

Em um final de semana, já entrando para o sétimo mês de gravidez, Heloísa estava limpando uma janela, quando escorregou no banco e caiu. Não seria um tombo feio. Nada para se preocupar, tanto que não comentaria nada com Gregório quando este voltou da feira. À noite, todavia, começou a sentir dores terríveis no abdômen, cólicas como nunca sentira. Gregório ficou apavorado e correram para o hospital o mais rápido que puderam e logo estariam no Hospital e Maternidade São Paulo, onde Heloísa fizera os exames e tinha o acompanhamento médico. Heloísa seria levada para a sala de operações, tão logo deu entrada na emergência, e entre as dores que a acometiam, olhou triste para Gregório. Correu um frio pela espinha dele, mas logo se recompôs e segurando a mão da esposa, ainda na maca, disse sem muita convicção:

-“Vai dar tudo certo. Você vai ver...”

Durante as próximas cinco horas Gregório permaneceria naquela sala de espera, aguardando uma notícia. Uma notícia que lhe devolvesse a paz de espírito. A correria naquele hospital era tremenda, parecia que todas as mulheres de São Paulo iriam parir naquele dia. Para Gregório tudo parecia muito irreal. A todo instante quando via uma enfermeira... Um médico... Um atendente... A pergunta era a mesma:

-“A paciente Heloísa de Oliveira, como ela está?”

A resposta também era a mesma:

“Não sei informar nada senhor, logo o médico responsável vai falar com o senhor.”

Não queria pensar no pior, mas como não pensar? Ninguém lhe informava nada. Como estaria Heloísa? E o neném? Ninguém lhe dizia nada e isto o deixava cada vez mais nervoso. Já estava naquela sala há exatas sete horas, quando um jovem com um jaleco branco, máscara arriada no pescoço e um boné esquisito o abordou:

-“O senhor é o esposo de dona Heloísa Oliveira?”

-“Sou sim...” Quase que a voz não lhe saía tamanha sua emoção.

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-“O senhor talvez não compreenda, mas nossa missão é muito delicada. Temos de cumprir obrigações que não gostaríamos de fazer... a medicina não consegue...” Gregório já não escutava as palavras do médico, sua mente estava anuviada, como se estivesse embriagado. “Não conseguimos salvar o bebê... Sua esposa não conseguiu resistir ao parto...” As palavras não faziam sentido. Isto só poderia ser um sonho mal e logo ele acordaria e tudo voltaria ao normal. Sem ter a mínima noção do que fazia saiu do hospital e vagou não se sabe por quantas horas, por uma São Paulo que já não era mais uma cidade alegre e que hoje estava mais cinzenta que nos outros dias. Heloísa. Seu sonho de primavera se fora. O que mais lhe restava? Não procurou vencer o impulso que o levou a um bar e bebeu! Bebeu com raiva! Procurava afogar não as mágoas, mas sua própria vida. Acordaria dois dias depois em um banco de praça no Ibirapuera. Não tinha a menor noção do que acontecera e como chegara ali, apenas uma tremenda dor de cabeça e uma lembrança fugaz dos últimos acontecimentos. Esta lembrança doía. E como doía. Daí em diante, nada mais lhe importava e entregou-se aos vapores do álcool sem preocupações, como quem se entrega aos sonhos de juventude. De boa vontade... Iria afogar sua memória... Esquecer quem fora... Sem memória. Sem dor! Só não conseguiria esquecer seu nome: Gregório, como a lembrá-lo que ele tinha uma história.

FIM