A PRIMEIRA VEZ
 

O sol da primavera penetra pelas grades e faz desenhos geométricos no chão. Fico um tempo absorto, brincando com as figuras, tentando montar um quebra-cabeça.
A brisa me presenteia com perfume de flores. Ponho-me a imaginar como deve estar bom lá fora. O dia está tão quente.
As pessoas passeiam, trabalham, estudam, têm família, problemas, brigas, risos e alegrias. Tudo normal. São livres.
Uma dor fininha vai entristecendo meu coração. Acho que é da idade. Só pode. Estou ficando abichornado. Coisas de velho. Até uma lágrima quer sair. Mas não deixo. Era só o que faltava.
Juvêncio foi tomar sol. Fiquei aqui. Quando ele voltar, não quero que me veja com cara de bobo, de choro. Logo eu. Nunca.
Desligo-me do presente.
Quantos anos teria? Cinco, seis, talvez. A mãe havia levado o mano ao hospital. Fiquei sozinho. Nos fundos da casa havia terra, lixo, cacos de vidro, pedaços de tijolos e de telhas, sabugos.
Pus-me a fazer brinquedos, encantando-me com minhas artes, distraindo-me e desligando-me de tudo, absorto. Uma barata morta que as formigas estavam carregando, tirou-me do enlevo.
Resolvi salvar-lhe os restos mortais e dar-lhe um enterro decente. Fiz uma cova, coloquei no fundo um pedacinho de telha, fazendo às vezes de caixão. Juntei a barata e mandei as formigas embora, dizendo:
 — Vão procurar comida em outro lugar. 
Coloquei a defunta no buraco, cobri com terra e providenciei uma cruz. Depois rezei o que sabia e cantei. Tudo de acordo com o que assistira há pouco tempo.
Meu mano de três meses foi para o céu. Mas, para isto, haviam deixado ele um tempo em cima da mesa da sala, chorado, rezado e cantado.
A mãe disse que era para ele ficar alegre e ir com os anjos. Depois, saíram com a mesma reza e cantoria, levando o caixão branco para o buraco no cemitério. Choravam.
Fiquei sem entender. Se ia para o céu – a mãe sempre dizia que lá era bom – por que choravam? Também chorei, mas somente por causa da choradeira. O pai ia sisudo, cabeça baixa, olhos vermelho, mas sem lágrimas.
Voltando ao assunto da barata, pensei se também seria necessário chorar. Se não fizesse isto, será que ela não iria para o céu? Esfreguei os olhos até ficarem molhados. Queria que a barata fosse fazer companhia para meu irmãozinho. Até mandei um recado:
— Quando encontrar o Juquinha, pergunta quando posso ir pra lá também.     
Nisto, ouvi um barulho no matinho. Não fiquei com medo. Somente curioso. Levantei-me e fui olhar.
Uma galinha. Fazia có, có, olhava para um lado e para o outro, como se procurasse alguma coisa. Aproximei-me. Ela nem se assustou. Foi então que me dei conta de que ela queria botar ovo.
Fui cercando-a de um lado e de outro, dirigindo-a para dentro de casa, ao mesmo tempo em que cuidava para ver se a dona dela não estava me vendo.
Havia uma sensação gostosa de estar fazendo algo escondido, perigoso. Meu coração batia com mais vigor. Como era bom.
A ave foi entrando na casa. Coloquei uma roupa no canto, ao lado o baú. Encaminhei-a para lá. Parece que gostou do ninho improvisado, pois foi ajeitando-se, aninhando-se, para botar o ovo.
Fechei a porta, para que não desistisse e para que a Dona China não descobrisse. Aguardei.
Decorrido um tempo, ela anunciou o feito, cantando escandalosamente, correndo o risco de chamar a atenção. Abri a porta com presteza e mandei-a embora, sem um obrigado.
Olhei para o ovo. Era meu. Meu. Havia furtado o objeto com artimanha, com cuidado de profissional. Ninguém havia me ensinado.
Mais tarde, descobri que isto era nato em mim. Usei e abusei, aprimorando com requinte. Meu nome ficou famoso. Perdi a conta das ações criminosas.
Mas a primeira vez nunca esqueci.




MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 14/07/2013
Reeditado em 15/07/2013
Código do texto: T4386979
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