Toda Brisa Tem o seu Dia de Ventania

Fiz uma fotomontagem com esse conto muito bom de

Alessandro Buzo (*)

Para quem desejar ver o vídeo - http://youtu.be/C9i8UtKtlFQ

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O Itaim Paulista dorme. É noite no último bairro da Zona Leste de São Paulo. Assim que o sol nascer será mais uma quinta-feira, dia de trabalho. Se for verdade que o paulistano é viciado em trabalho, André é um desses maníacos. Que acredita na força do trabalho, que acredita estar no caminho certo, acredita que um dia a vida dura vai melhorar, mas até chegar esse dia não se cansa de trabalhar. Pula da cama às 5 da madrugada todo dia e só volta da lida com a lua no céu.

Nem para pagar as contas o dinheiro dá, então hora extra para completar. Deus abençoa não ter que pagar aluguel, mora com mulher e filho nos fundos da casa da mãe, a pequena casa de dois cômodos. Não falta amor e as necessidades e dificuldades são encaradas de frente. André ultimamente anda meio puto da vida com uma porrada de coisa que vê no dia-a-dia. Não entende como tem tanto pobre num país tão rico. Como tantos políticos são corruptos, só pensam em roubar. Como tantas bandas boas ralam no subúrbio e só artista queridinho da mídia vai repetidamente nos programas. Outra coisa que faz André perder o sono é a respeito de como o seu patrão trata ele e seus amigos de trabalho. O coreano trata a todos aos berros, nunca deve ter ouvido falar em respeitar para ser respeitado. André acha que, até pelo fato de o patrão ser estrangeiro, deveria ter educação com seus funcionários. Todos brasileiros. Todos baianos, pernambucanos, mineiros, paulistanos, todos filhos desta terra amada. Mas a qualquer atraso de um funcionário o patrão já esculachava no meio da loja, na frente de qualquer um, aos gritos.

Outro fato que enchia André de indignação era o coreano falando mal do Brasil o tempo todo. Reclama daqui, critica dali, mas ir embora que é bom, nem pensar. Também no seu país de origem dificilmente ele teria uma mansão como aqui, casa na praia e carro de luxo que, por segurança, ele mandou blindar. Se já não bastasse o mau trato do patrão, à tarde quem chegava era a patroa e os três filhos. Os moleques mexem com um e outro, destratam o cortador, incomodam as vendedoras e ninguém fala nada, pela frente, é claro, porque por trás falam o bicho dos três monstrinhos, digo, filhinhos do patrão.

André é estoquista, no meio da bagunça organizada do estoque ele sabe onde está tudo, grita lá de baixo que o André manda. Os cortes certos, as peças corretas. Há dois anos André presta serviços na loja e aguarda o aumento salarial que o coreano lhe prometera se ele tiver um pouco mais de paciência.

Quinta, 3 de maio de 2001, André pula da cama ao som do despertador, os ponteiros marcam 5 horas da manhã, quase que automaticamente ele toma banho, prepara uma mamadeira para quando o filho acordar. Um beijo na esposa, que lhe deseja um bom dia, ele o mesmo, e parte. O sol ainda não está no céu, a escuridão ainda prevalece, mas, como milhares de trabalhadores, ele nem tomou café da manhã, e na bolsa carrega a marmita, já pensa no almoço antes mesmo do café. André acha que toda empresa deveria dar tíquete-refeição.

Na bolsa, também, vão dois livros, um que ele está acabando de ler e outro que não vê a hora de começar. Apesar do salário baixo e de todas as dificuldades, sempre que sobra algum, André passa num sebo e adquire um livro. Seu passatempo predileto nas conduções é ler, do Itaim Paulista ao Brás são quarenta minutos diários de leitura na ida e outros quarenta na volta. Isso, quando amigos não chamam para jogar uma sueca, o jogo oficial da linha variante dos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Seis horas e André vê um tumulto na frente da estação do Itaim, os trens, para variar, estão com problemas. Segundo um cartaz, um trem tinha descarrilado e os outros circulavam com atraso e maiores intervalos nas estações. Mesmo não estando em condições de prestar um bom atendimento ao usuário, a CPTM não abre mão de cobrar a passagem.

Alguns vão para o ponto de ônibus. Como de ônibus era certeza de atraso, André apostou no trem e embarcou. O trem que ele pegou ficou de quinze a vinte minutos sem sair do lugar e, nesse tempo, toda a composição superlota, o ânimo para ler o livro que está na bolsa vai embora, não dá mais nem para pegar a bolsa. A viagem de quarenta minutos chega, nesse dia, a uma hora e meia. No meio da viagem, André se pergunta por que a CPTM não utiliza os trens de doze vagões, já que estão com problemas no percurso, mas parece que, de propósito, só circula trem de seis vagões, como se o pobre merecesse sofrer. A pessoa sente-se numa lata de sardinha.

Cansado, desanimado, amassado e humilhado, André desembarca no Brás, às 8 da manhã. Nem o cansaço, nem a irritação pela péssima viagem fazem André esquecer o coreano. Ele caminha rapidamente, passa as catracas, desvia dos que andam vagarosamente, desvia das pessoas paradas vendendo passe em frente à estação, desvia das inúmeras barracas dos camelôs, cruza como um raio o largo da Concórdia, e às 8 e 10 entra na loja, que fica na rua Maria Marcolina.

O coreano olha automaticamente para o relógio na parede, quarenta minutos de atraso. O patrão dispara uma metralhadora giratória:

— Atrasado de novo, André, pelo amor de Deus! Será que eu falo grego, não vou permitir atrasos, acorde mais cedo, mude de condução, faça o que você quiser, mas chegue no horário. Vai dizer que foi o trem? De novo o trem? Ou sua vó morreu de novo?

O coreano não parava de falar, nem se importava com a presença de três fregueses, nem muito menos com os demais funcionários que olhavam para André, que estava ali parado, só ouvindo. Todos esperando suas explicações. Surpreendentemente André gritou:

— Cheeegaaa...!!!

O queixo do coreano quase caiu, seus olhos se arregalaram, ele não pensou duas vezes e disse que André estava despedido. André riu, começou a rir muito, quase chorou de tanto rir. Depois falou:

— Antes de ir embora, gostaria de lhe falar.

Subiu no balcão e pegou o relógio na parede, voltou as horas para 5 da manhã, tacou o relógio no chão, de modo que ele quebrou com os ponteiros marcando 5 horas. André prosseguiu. Frente a frente com o patrão, que estava sem reação, começou a falar:

— Agora, você vai ouvir tudo que eu passei das 5 da manhã até agora...

O coreano tentava se safar e André o segurava pelo colarinho. A platéia aumentou e todos ouviam as explicações de André, o coreano não falou mais uma palavra. Quando André terminou, o patrão falou:

— Esquece isso, André, e vai trabalhar.

— Trabalhar? Eu me demito, ouviu, eu não serei nunca humilhado por você, eu me demito. Me demito... Me demito!!!

Então, virou as costas e partiu, pegou o trem, tirou o livro que lia, parece que só os textos de João Antônio o compreendem, ele chega em casa e, mesmo desempregado, é recebido com um sorriso pela mulher e com festa pelo filho.

(*)ALESSANDRO BUZO

escritor dos livros "O TREM" - BASEADO EM FATOS REAIS (2000), "SUBURBANO CONVICTO" - O COTIDIANO DO ITAIM PAULISTA (2004), "O TREM - CONTESTANDO A VERSÃO OFICIAL" (2005) e GUERREIRA.

José Luís de Freitas
Enviado por José Luís de Freitas em 06/04/2007
Reeditado em 16/02/2012
Código do texto: T440204