QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Manhã alta, o Sol brilhava forte e tudo fazia crer que seria uma tarde das mais quentes. Jéferson abriu os olhos assustado graças ao tapa que levara no pé de ouvido. O guarda de trânsito foi logo dizendo asperamente:

— Vamos, vagabundo, circulando! Já estamos na quarta-feira de cinzas, a folia acabou.

De fato o trio elétrico fora embora, os foliões tinham desaparecido. Agora na avenida, em vez da alegria carnavalesca, apenas o vai e vem dos veículos passando apressados. Tudo voltara ao normal afinal.

Jéferson se levantou ainda um pouco zonzo e saiu sem protestar. Não gostava de policiais, achava-os muito arrogantes, ou talvez fosse porque sua ex-mulher o trocara por um sargento da PM. “É, talvez fosse esse o motivo”, admitia para si mesmo.

O rapaz começou a caminhar lentamente pelo canteiro central da avenida, onde na noite anterior caíra de bêbado, quando seus pés tocaram em um objeto meio camuflado pela grama. Abaixou-se e o pegou. Era uma carteira do tipo feminina, dentro havia cartões de crédito e um maço de notas de cinquenta.

— Nossa, deve ter umas dez dessas belezocas aqui! — Exclamou o jovem folião admirado. Então, como ocorria sempre nessas horas, Jéferson escutou aquela voz diabólica a tentá-lo: “ei, achado não é roubado, por isso não seja bobo, fique com a grana”. Subitamente, lembrou-se dos tempos que passara no xadrez, e rápido mandou o Diabo pastar.

Por coincidência — e elas estão por aí — o endereço onde poderia entregar a carteira ficava a alguns poucos quarteirões dali. Jéferson apertou o passo e logo chegou defronte ao número 211 da Rua dos Desconsolados.

Uma mulher magra, com pernas de seriema e usando um avental um pouco sujo, veio atender ao portão exibindo uma careta aborrecida.

— O que é que você quer?

— Oi, meu nome é Jéferson, a dona Firmina de Jesus está?

— Hum, a patroa tá muito ocupada; o marido acabou de chegar de viagem.

— É que eu tenho que entregar algo que deve estar lhe fazendo muita falta. Jéferson tinha colocado a carteira em um dos bolsos da calça.

— Está bem, dê cá que eu entrego.

— Sinto muito, só entrego em mãos da própria.

A mulher fechou ainda mais a cara e falou com ar indignado:

— Ora, mas que neguinho abusado! Sou empregada, não ladra.

— Bom, a senhora é quem não está colaborando. Depois não venha me culpar se a sua patroa a despedir.

A empregada magricela empinou o nariz, lhe deu as costas e voltou para o interior da casa.

Minutos depois, surgiu uma moça ao portão. O rosto cheio e corado, corpo robusto e as coxas fartas, ofereciam um verdadeiro contraste com a figura esquelética da outra, que acabara de sair. A jovem teve um sobressalto ao avistar Jéferson, mas conseguiu se conter.

— Bom dia! Eugênia me disse que o senhor quer falar comigo. Eu perdi minha carteira ontem, não sei onde, espero que venha me trazer boas notícias.

O moço retirou a carteira do bolso e a entregou a Firmina, dizendo:

— Eu a encontrei no canteiro central da avenida principal, onde o pessoal brincou o carnaval.

— Ah! Nem imagino como ela foi parar lá, detesto carnaval. Ei, por que está me olhando assim? — Perguntou a mulher meio aflita.

— Desculpe-me, mas tenho a impressão de que já nos vimos antes, Firmina, e não faz muito tempo.

Nesse instante, ouviu-se uma voz grave e abafada urrando de dentro da casa.

— Quem está aí, Firmina?

— Ninguém, querido, eu já estou indo. Em seguida, dirigindo-se novamente a Jéferson, Firmina advertiu-o:

— Olhe, como pode ver, eu estou com pressa. Certamente foi só impressão sua, nunca te vi mais gordo.

— Mas eu tenho certeza e…

— Saia daqui, pelo amor de Deus! Firmina retirou o maço de notas da carteira e, dando-o ao rapaz, acrescentou nervosa:

— Tome, o dinheiro é seu, agora suma!

Jéferson agarrou as notas e antes de se retirar, falou sorridente:

— Até o ano que vem, Firmina.

Fitou-a pela última vez e teve a sensação de que ela dera um leve sorriso quando já ia fechando o pesado portão de ferro.

O efeito do álcool havia parcialmente passado, e o folião se recordava bem agora da mulher com quem brincara por duas noites seguidas, “Sim, era ela mesma; quantas loucuras fizemos”! Firmina chegara de repente no meio da folia e lhe disse:

— Vamos apenas nos divertir, meu bem, o resto não importa saber, afinal estamos no carnaval.