PAULO RICARDO
 
                                                                 
 
A manhã de primavera se revestia de uma cortina de chuva entremeada com raios de sol. Adelaide atrasara-se mais uma vez. Na hora de sair, era a mesma coisa, Kely agarrava-se em suas pernas e insistia:

 — Mãezinha, fica. Kely vai chorar.

E chorava. Os olhos castanhos brilhavam, e as lágrimas eram abundantes.

— O que é isto? Você já é uma mocinha. Mamãe precisa trabalhar, ver o vovô. Vamos. Seca estes maravilhosos olhinhos. Pronto. Agora, o sorriso. Passou? Quando voltar, mamãe traz um doce.

Retirou a capa úmida e pendurou no cabide. Pôs o uniforme, ajeitou os cabelos e dirigiu-se para o aposento quarenta e três. De longe, avistou o Dr. Josias. Seus olhos se umedeceram. O velho estava sentado na cadeira de balanço, imóvel. Deteve-se a examiná-lo, enquanto uma lágrima descia pela face esquerda e encontrava abrigo na boca. Parecia fazer parte do conjunto: flores no caramanchão, a árvore de tronco enrugado, a cortina balançando, o cão deitado a seus pés. O homem tinha o olhar fixo no nada.

Aproximou-se, colocando-se em frente aos olhos azuis-cinzentos, que  refletiam a manhã. A mesma imobilidade. Cuidou de verificar se estava respirando. Sim. E havia dor acentuando a marca dos anos. Com medo de assustá-lo, cantarolou uma música, que aprendeu com a mãe. A mesma que cantava para Kely. Não despertou Josias. Então, resolveu chamá-lo, com uma carícia no braço.

— Dr. Josias. Ei! Volte. Está na hora da nossa conversa.

O homem apenas mexeu os olhos, ainda sem se dar conta da presença da moça. Insistiu:

 — Olá. Tem alguém aí?

Recebeu um sorriso.

 — Ufa. Desta vez a viagem foi distante. Não foi?

— Bom dia, Adelaide. Acho que cochilei. Não a vi chegar.

— Já começava a ficar com ciúme. Eu aqui, num esforço danado para chamar a atenção, e o senhor me traindo.

Outro sorriso.

—Obrigado, filha. Só você para me dar alegria.

—Que bom. Hoje, temos bastante tempo. Lembra que prometeu contar-me uma história? Pois vai ser agora. Que tal? A menos que não queira, é claro. É verdade que foi um médico famoso?

— Famoso é exagero. Tinha um bom conceito. O certo é que amava a profissão e tinha pacientes que divulgavam meu trabalho, depois de serem gentilmente atendidos.

— Com certeza não era só a gentileza que os levava a isto. O senhor é modesto.

— Talvez. O fato é que meu nome era conhecido. Assim, fui progredindo e fazendo fortuna. Casei-me. Nossa filhinha tinha cinco anos quando a mãe morreu. Atirei-me ao trabalho. Achei que nunca mais amaria ninguém.

Conheci Gicelda. Não era amor. Mas a moça tratava com tanto carinho minha filha que resolvi torná-la minha esposa. Vivíamos bem. Voltado mais para o trabalho, ficava feliz de chegar em casa e encontrar Gicelda e Ana Cristina brincando, rindo, como duas crianças. Quando que poderia imaginar? Por muito tempo me condenei. Hoje, vejo que não teria como suspeitar. Tudo parecia perfeito. Nosso bebê estava por nascer. Um menino. Paulo Ricardo seria seu nome.

Antes de me inscrever para o congresso, consultei Gicelda. Não as queria deixar sozinhas. Mas ela mesma insistiu para que fosse. Era tão compreensiva. Tua carreira é importante, disse-me. Pode deixar que ficaremos bem. Depois, será somente por três dias. Vá. Ficaremos te aguardando. Hoje, percebo que poderia ter desconfiado de tamanha compreensão. Mas não tinha como. Era uma pessoa equilibrada, falava macio, sempre sorrindo. Nunca vi uma contrariedade em suas atitudes. Penso que fui imprudente. Afinal, pouco a conhecia. Depois, lembro que seus amigos e parentes me disseram que ela era assim mesmo: sensata, boa filha, boa irmã. Ainda assim, não me perdoo.

Josias chora baixinho, com o rosto escondido entre as mãos. Adelaide chora também. Coloca a mão no braço do homem. Sente-o tremer.

— Se não quiser continuar, não precisa. Faz mal mexer na ferida. Olha. A chuva passou, que tal darmos uma caminhada? 

— Não. Falta-me coragem. Tenho as pernas fracas e sinto como se meu coração estivesse parando. Dra. Adelaide, acho que o fim se aproxima.

— Nem diga uma coisa dessa. O senhor é um homem forte, saudável.

—Antes fosse. Algo está me incomodando. É um cansaço geral.

Novamente, o olhar parado. Depois, suspira fundo, contrai os lábios, como se sentisse dor. Retoma o relato.

— Continuando, viajei para o congresso. Logo que cheguei ao Rio, telefonei. Tudo bem, respondeu-me. Ana Cristina está dormindo. No dia seguinte, fiquei o tempo todo envolvido com a tese que iria apresentar. Se não tivesse ido. Nada era mais importante do que minha filhinha, nada. Recebi o telefonema do Delegado de Polícia. Não sei como consegui sobreviver. Gicelda estava presa. Ela mesma se apresentara à polícia para confessar o crime. Foi horrível. Quarenta e nove facadas. Ainda tentou queimar a criança, para fazer desaparecer os vestígios. Deixou-a na churrasqueira e foi ao Praia de Belas fazer compras para o enxoval do bebê. Quando retornou e viu que o corpo não tinha queimado de todo, descontrolou-se e chamou a  polícia.

Nunca vi meu filho. Era meu herdeiro. Queria que fosse médico. Perdi-o também. Nem sei que fim levou. Mudei de cidade. Nunca mais trabalhei. Sentia-me um monstro, por não ter defendido minha filha, por ter levado uma mulher má para dentro de casa. E sou um monstro. Eu... 

O homem silencia. Adelaide espera, mantendo-se calada. Depois vê que Josias vai pendendo a cabeça e derreando os braços. Chama-o, mas não mais obtém resposta. Nenhum sinal de vida. Ajoelha-se a seus pés e soluça. Depois, senta-se ao lado do homem, passando a mão na face vincada, e vai falando, gotejando mágoas, enquanto a chuva fina volta a cair, agora sem os raios de sol. 

— Por que não tive coragem? Queria dar um tempo, aguardar que ficasse mais forte para fazer a revelação. Sou tua neta. Aquela mulher má, que matou uma criança, é minha avó. A história foi escondida de mim. Só há pouco é que descobri e me pus a te procurar. 



 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 07/08/2013
Reeditado em 07/08/2013
Código do texto: T4424259
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