Bendito fruto

Andréa Farias

“Nossa! Quanto movimento”, pensa a garota, surpresa a observar à frente o extenso tapete verde repleto de girassóis humanos. Ela pára por um segundo. Tempo necessário para rememorar a idéia de que, em lugares onde os invernos são rigorosos, as pessoas tendem a valorizar dias de sol, mesmo que tímido, como naquele início de primavera. Londres não fugia à regra.

Marina caminha lentamente, admira a cena que repete um domingo na Redenção. Toalhas estendidas, velhas mantas para deitar no gramado e o zum zum zum perturbador de histórias pessoais contadas simultaneamente. “O blá-blá-blá é universal”, comenta. “Mas ainda prefiro-o no bom e velho português”, arremata. Ela já estava naquela Babel havia tempo suficiente para ter ouvidos abertos a vários idiomas. A semelhança entre as vidas de estrangeiros na Europa era nítida. As noites nos pubs, os flertes, as libras contadas, os baseados na Holanda, a beleza das francesas, a troca de guarda do Palácio de Buckinghan... Ladainha carregada de deslumbramento. E Marina já estava quase batendo os sapatinhos como Dorothy. “Não há lugar como o nosso lar”, repetia, convencida de que se passeasse sozinha daquele jeito em um parque brasileiro repleto de gente estranha ainda assim não sentiria a mesma solidão.

A brisa traz um odor marcante, que distrai Marina da melancolia. Ela interrompe a caminhada. Gira o pescoço para os lados com o nariz franzido. O olhar procura confuso entre casais de mãos dadas, grupos de amigos que conversam enquanto caminham. “Conheço esse cheirinho de pele branca”, ela matuta.

Algumas pessoas deixam uma fragrância característica enquanto passam. Daniel era assim. Ela olha ao redor para confirmar o que o instinto já reconhecera. “Só pode ser ele!”, aposta, deixando satisfação escapulir num leve sorriso. Mais à frente, entre a multidão, localiza o rapaz. “É o Daniel”, grita segura. Em sentido contrário, ele vai afastado demais. Ela não hesita: muda a rota.

Caldo de melancia. Marina jamais esqueceria o aroma do amigo da prima. Inconfundível. Era um tipo magro definido de 1 metro e 80 de altura. Usava o cabelo preto cuidadosamente desgrenhado assim como as sobrancelhas grossas, que quase uniam-se. Vestia-se de bom humor, com camisetas estampadas de histórias em quadrinhos. Nos aniversários de Tatiana, distraía a todos com suas tiradas rápidas e inteligentes. Uma espécie de bobo da corte da rainha de seios turbinados e longas madeixas. E Marina? A mucama, é claro. Ou “a prima da Tati que faz o clericot”. Ela se juntava à roda de amigos de Tatiana somente após servir a primeira rodada do coquetel. Cuidava para que ficassem frutinhas no fundo da taça de Daniel, que retribuía a gentileza introduzindo Marina no grupo de forma divertida. “Vocês vão ficar de quatro pés por causa desta menina”, ele dizia aos demais, com a bebida numa das mãos e o braço sobre os ombros da garota. “Eu já fiquei”, concluía a piada, fazendo com que Marina sentasse ao seu lado entre os admiradores da prima glamourosa. De perto, ela curtia o perfume e a presença do garoto. Claro que Daniel queria mesmo ser o presente da aniversariante. Mas nunca foi prato principal no cardápio de Tatiana, embora, para Marina, cheirasse a almoço de domingo. Não era um amadeirado como aqueles machões, que se auto elogiavam a todo tempo e adulavam a aniversariante. Era cítrico. Certeiro nos comentários. Discutia de Holocausto a Reality Shows. Uma espécie de Jô Soares com 60 Kg a menos e um tanto de humildade a mais. Capaz de confessar o próprio medo de lagartixa àquela platéia de gladiadores e ainda puxar a onda de risos. Garoto, meio descompromissado, é verdade... Mas muito charmoso.

O coração bate acelerado enquanto Marina aproxima-se de Daniel, que agora segue devagar, direcionando-se ao Kensington Gardens. Distraído, ele fotografa cada detalhe do Hyde Parque. “Um típico estrangeiro”, ela debocha. Ofegante, não perde tempo: toca o braço do garoto, que se vira rapidamente lançando-lhe uma golfada brusca da própria fragrância.

- “Oi, Dani!”, ela pronuncia ágil, disfarçando a ansiedade.

- “Oi, garoota!”, ele responde. A voz sai tremida pela surpresa e alegria.

- “Olha... Essa cidade vai te deixar de quatro pés... Eu já fiquei.”, emenda bem humorada. Ele segue a deixa: põe um dos braços sobre os ombros de Marina e sentam-se lado a lado mais uma vez. Agora, sob um novo reinado.

Andréa Farias
Enviado por Andréa Farias em 09/04/2007
Reeditado em 25/04/2007
Código do texto: T443246