Sagrado.

DEDICADO AOS PROFESSORES: OTIMISTAS INCURÁVEIS



               O dia amanheceu escuro, chuvoso,levantei fiz café, fiquei preguiçosamente olhando pela janela o dia inteiro, até o final da tarde, cozinhei o almoço, puxei a mesa para perto da janela da sala para continuar olhando a chuva, vigiei a rua quase o tempo todo, maravilhosamente deserta.
               O mundo parecia subtraído das pessoas, bonito de se ver, pacato e vazio, ninguém sai de casa com uma tempestade daquelas!
               Ninguém? Eu saio, sou rebelde, resolvi andar até a praça, como fazia no final das tardes.
               Dias de chuva são nostálgicos e me dão uma tristeza seca, oca, gotas que carregam a saudade, um solitário que fica triste tem alguma coisa para pensar.
               Vesti roupa, estava na hora da caminhada do final da tarde.
               Nada é tão difícil para um homem da minha idade quanto se vestir: blusa, calça, capote, finalmente calcei o sapato e por ultimo o guarda-chuva.
               -Que absurdo de sair na chuva? - alguém poderia dizer, ao me ver da sua varanda, curvado e andando devagar, molhando os sapatos, não me importo o que pensam .Quero apenas andar, minha casa estava suja, fedia a mofo, precisava do ar puro e úmido dos raros dias de chuva.
               A bagunça ficou mais de uma semana, pois a funcionária havia faltado na ultima quarta-feira, sozinho eu só limpo por cima, não consigo arrumar nada, organizar coisas retira a minha energia.
               Minha filha ficou de ligar no domingo, mas não ligou, ela nunca cumpre o que promete, sou eu quem liga: imploro que me leve ao médico para fazer o PSA e ver se está tudo bem com a minha próstata. Um pedacinho entre as partes intimas que me complicou a vida.
               Também quero trocar de óculos, não consigo ler as noticias, me esforço , é uma tortura só ler só as manchetes, leio e releio as manchetes. Fui um professor, ficar sem a leitura é como comprar um patins sem as rodinhas, não tenho paciência para ler livros, mas o jornal me coloca no mundo.
               Sei que a maioria de gente da minha idade vivi de memórias, eu cada ano que passa tenho menos memórias, na verdade não queria nenhuma memoria, minha cabeça deveria estar livre de lembranças.
               Por que carregamos essas lembranças se não podemos tocá-las, não podemos revivê-las, quando tinha quarenta anos nem pensava na minha infância, quando pensava parecia outra criança.
               Gosto das sensações do presente, gosto do horror que o futuro ainda desperta em mim, não ligo para o passado, gente que pensa no passado nada entende, a vida é um prêmio que alguém pega de volta.
               Uma sacola voa com a força do vento sul, mesmo diante da chuva, levantou um voo como um pássaro, livre e desprendido, a minha primeira sensação é segurá-la impedindo a sua impertinencia contra a logica.
               Ela desafiou todas as forças da física que conheci, parei em pé antes que aquele pássaro selvagem cruzasse a rua, pois a ousada sacola pássaro, flutuando no vento forte chegou a praça primeiro e pousou.
               Como ela conseguiu?Que ato magnifico de desafio!
               Talvez a chuva não fosse tão opressiva com suas gotas pesadas? Ou talvez a sacola não fosse iguais as sacolas normais, fosse imune a chuva e continuasse leve como as plumas de um pássaro? Ainda poderia ser a minha imaginação que via o mundo de uma maneira tão otimista?
               Sou um professor otimista que por ser otimista sofre, só que nem sempre o sofrimento é ruim, acho que foi o sofrimento que me fez quem sou. Não é porque vou sofrer que vou enxergar a vida com a cara amarrada. Quem não vai amar, pois será traído, quem não pode ensinar porque ninguém vai aprender, quem não fala mais a verdade porque todos estão mentindo, quem não deve ligar para o outro, porque ninguém mais liga.
               Um mundo onde sacolas velhas e molhadas de supermercado levantam o seu voo contra toda a resistência de uma chuva impertinente, que enche rios, cria enxurrada e expulsa pessoas de suas casas a sacola resiste.
               Atravessei a rua, para encontrar a sacola aterrizada no chão de maneira graciosa, perto do canteiro de flores, o meu canteiro favorito.
               Talvez ela parou diante das flores de propósito , pois a graciosa sacola agora submetia-se a chuva , resignada como um crente depois que viu Deus.
               Olhei em volta para ver se havia alguma pessoa observando, um intruso entre nós dois, ninguém,eu estava livre para dialogar com aquela imagem.
               A sacola já teve a sua função, agora, descartada vagava no seu universo inerte a espera de um significado.
               Um carro passou ao fundo, jogou água sobre a sacola e meus sapatos, o trauma com a lama da sarjeta a deixou imóvel, a suas pontas que vibravam diante do vento com asas agora pareciam mortas.
               Diante da lama que a cobria, murchou, não tinha mais a vitalidade que o vento lhe dera, a chuva diminuía cada vez mais e o glamour da tarde dava lugar ao frio e a impessoalidade da noite até que escureceu totalmente.
               Observei e lembrei do sagrado.
               O que será que Deus acha do homem? Será que somos uma sacola que se moveu no ar desafiando as leis da física? Ou somos essa sacola parada inerte no chão, com uma camada de lama da sarjeta cobrindo a sacola como algemas?
               A noite chegou pesada, não corri com medo da noite, fui valente e fiquei ali parado, já não ligava para o terno molhado, passei a ouvir uma musica bem ao longe, assovio, descontraído e que parecia ser um aviso do além, cada vez mais perto, não podia distinguir que tipo de musica era, a melodia me agradava, distraído, pensei fazer parte do balé da vida, a musica o balançar das flores, a sacola e eu.
               A musica chegou mais forte ao meu ouvido, virei e vi um homem com uniforme solene e uma vassoura, vinha limpando o caminho, estendeu a mão respeitosa para tirar a sacola, assustado gritei.
               -Pare!A sacola é minha – ele me olhou e fez um gesto com a sobrancelha.
               -OK. – disse e continuou limpando a praça.
               Peguei, sacudi, dobrei e guardei no bolço, em muitas coisas o voo da sacola foi como a minha vida.
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 20/08/2013
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T4442830
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.