O ALIENADO

Na ampla e arejada sala de estar, sentado em uma aconchegante poltrona com estampa xadrez, vamos encontrar um homem aparentando uns 65 anos e exibindo uma barriga proeminente, fitando com interesse o moderno aparelho de tevê.

— O que é isso, Pedro? — Indagou a mulher algo surpresa, que naquele exato momento tinha entrado na sala.

— Veja, Maria, o âncora do jornal acaba de noticiar que palestinos e israelenses finalmente selaram um acordo definitivo de paz. Mas que maravilha!

— Ei, tá maluco, homem! A televisão está desligada.

— E daí — respondeu o velho Pedro naturalmente — é bem melhor que fique assim, afinal ninguém aguenta mais tanta violência veiculada pela tevê. Pelo menos desse jeito eu posso escolher o que eu quero ver, não acha?

— Eu acho que você ficou doido mesmo, mas tudo bem. Agora quer me fazer o favor de ligar essa joça, a novela vai começar e eu não quero perder a surra que aquela piranha da Fátima vai levar no capítulo de hoje.

Visivelmente indignado, Pedro respondeu irritadiço:

— Violência e indecência. Não entendo por que as pessoas gostam tanto disso. Esqueça, mulher, enquanto eu viver nunca mais este televisor será ligado. Vá ver novela na tevê lá do quarto, se realmente é isso que deseja. A esposa se afasta da sala com um semblante amarrado, sem dizer palavra alguma, afinal mesmo que o marido estivesse de fato enlouquecido, ela não estava acostumada a desafiá-lo: “Quem sabe não seja apenas uma perturbação passageira” , pensava a mulher esperançosa.

No entanto, transcorridas algumas semanas, a situação continuava inalterável. Na sala de estar, aquele moderno televisor com tela de LCD permanecia desligado, e Pedro até cogitava vendê-lo.

Dias depois, o casal recebia a aguardada visita de Valéria, sua única filha, moça inteligente e independente, que morava na capital mineira. Durante três dias a pequena, mas unida família, pôde renovar os momentos de alegria. Após se inteirar do que estava acontecendo, compreensiva e apaziguadora, a jovem passou a argumentar com o velho Pedro:

— Mamãe me contou o que o senhor anda fazendo. Ouça, pai, por mais que a realidade seja triste, dura, e por vezes feia, temos de enfrentá-la de peito aberto.

— Já enfrentei muito a realidade, minha filha — ponderou o homem calmamente — agora estou cansado. Deixe esse velho alquebrado viver outra realidade, mesmo que ela esteja só na minha cabeça.

— Esse é um direito seu, papai, entretanto, não pode obrigar a mamãe ou a quem quer que seja, a viver no seu mundo particular, o senhor me entende?

— Ó, tem razão, querida! Diga à sua mãe que ela pode assistir televisão o quanto quiser, mas que não conte comigo para acompanhá-la.

Satisfeita e bem-humorada a moça observou:

— Hum, gostei dessa sua camisa, ficou muito elegante!

— Pois é, depois que parei de comprar esses jornais e revistas inúteis, tem sobrado mais dinheiro para me vestir melhor, e disso aposto que sua mãe não se queixou.

— E nem poderia, não é mesmo, pai?

Os dois conversavam enquanto aguardavam sentados em um banco de madeira da modesta rodoviária da cidade, o ônibus que levaria a filha de Pedro de volta a Belo Horizonte. Quando o ônibus chegou, um tanto atrasado, pai e filha se despediram com a promessa de logo estarem juntos de novo.

Prestes a embarcar, a bela jovem ainda gritou:

— Pai, deixei uma carta pra vocês debaixo do meu colchão. Eu os amo muito, nunca se esqueçam disso, e deu o seu derradeiro aceno de mãos.

De retorno a casa, o velho Pedro foi até o antigo quarto da filha, agora convertido em quarto de hóspedes, ergueu o pesado colchão de molas, e abrindo um envelope um pouco amassado, leu:

"Pai, mãe, perdoem-me por ter mentido durante tanto tempo pra vocês. Desde que me mudei para Belo Horizonte, ganho a vida como garota de programa. Estou tentando sair dessa vida difícil, arranjar um emprego descente, no entanto, depois que a gente entra, é complicado sair. Mas se Deus quiser conseguirei abandonar a prostituição. Não tive coragem de lhes contar a verdade pessoalmente, por isso resolvi escrever. Não sei se vocês vão poder me perdoar, mas saibam que estou muito arrependida."

O pai num misto de raiva e compaixão, picou o papel em pedaços e o atirou na lata do lixo. Não diria nada à esposa, não até poder rever a filha.

***

Fazia exatamente dois meses que a filha havia retornado para a capital, quando no meio da madrugada o casal Pedro e Maria receberam aquele que seria certamente o telefonema mais triste de suas vidas. Com voz pesarosa, porém, firme, o investigador de polícia, do outro lado da linha, informou:

— Lamento ter que dar-lhes essa notícia, senhor, mas tudo indica que sua filha, Paula Furtado de Campos, fora assassinada. O corpo da vítima foi encontrado nu em um matagal, com sinais evidentes de violência sexual. Roupas foram encontradas juntamente com uma bolsa feminina a alguns metros de onde estava o corpo, e nela, os documentos da vítima.

Quando o policial desligou, Pedro se abraçou à companheira de tantas lutas e disse com um ar choroso:

— Quisera neste instante ser um verdadeiro alienado para não ter que lhe dar tão terrível notícia, mulher.

No velório, Maria olhava inconformada para o corpo inerte da amada filha deitado em um caixão e ora chorava, ora balbuciava: “a realidade é isso? Não vou suportar, meu Deus!”

O velho Pedro saiu da sala onde o corpo era velado, e erguendo os olhos aos céus esboçando um quase sorriso, proclamou:

"Minha filha preciosa: eu escolho acreditar que você ficará bem, e que logo vamos nos encontrar e nos abraçar demoradamente, como naqueles dias em que você era pequena e vinha me receber no portão de casa, quando eu chegava de uma daquelas longas viagens feitas a trabalho."